Uma homenagem a Hans Christian Andersen

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artwork de Kay Nielsen (1941)

Hoje é Dia Internacional da Literatura Infanto-Juvenil. E também é data de nascimento do célebre autor Hans Christian Andersen — um dos escritores mais brilhantes que já existiu.

E não é para menos: ele escreveu contos inesquecíveis como O Patinho Feio (1843), O Soldadinho de Chumbo, (1838), A Roupa Nova do Imperador (1837), A Pequena Vendedora de Fósforos (1845), A Rainha do Gelo (ou da Neve) — a história original (1844) que inspirou Frozen (2013), let it goooo – e muitos outros.

Mas verdade seja dita: não há como dissociar Hans Christian Andersen de A Pequena Sereia, de 1837. E não é só porque é um dos textos mais emocionantes que já li até então. Mas também pela história por detrás da história. Pela história de vida do próprio autor.

A visão sentimental [de Hans Christian] do mundo nessa história foi a que mais tocou fundo gerações e gerações. E foi a que mais emocionou o próprio autor.

É que a vida da Pequena Sereia reflete sua própria experiência de vida.

A história original de A Pequena Sereia é bem diferente da adaptação açucarada da Disney (1989), é claro. A história trata a passagem de um nível a outro. Explico: um dos temas mais fortes presentes no conto é o desejo de pertencer a um mundo do qual não fazemos parte. [é aqui que você começa a se lembrar da música Part of your World.

Quando Hans Christian Andersen nasceu, em 1805, na pequena cidade de Odense, Dinamarca, seus pais eram extremamente pobres. Mas a cidade tinha um teatro e como Hans C. admirava muito a dramaturgia, arriscou a carreira. Com 14 anos, mudou-se para Copenhagem em busca de um papel no Royal Theater — sonhava em ser famoso, bem-sucedido, aceito — sonhava em ser amado. A carreira não decolou. Depois de cantar e atuar em turnês, foi dispensado pois era muito alto, esquálido e sua voz mudou com a idade.

Quando publicou seus primeiros contos infantis, um amigo próximo disse que ele se tornaria imortal com tal talento. E esse é o ponto de encontro com o desejo que impulsiona a vida da Pequena Sereia.

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[SPOILER ALERT]

Na versão original, a Sereia (que não se chama Ariel, chama-se “Sereia” apenas) tem duas motivações na vida: ela se sente atraída pelo mundo humano, principalmente pelo Príncipe que salva de um naufrágio, mas também sonha em possuir uma alma imortal.

Para receber uma alma imortal, as sereias devem ser amadas por alguém. No conto, quando a Sereia resgata o Príncipe, ela e o leva até a praia e o deita na areia, na beira de um convento. Algumas noviças chegam para ajudar — mas, ao se assustar com a presença de outros humanos, a Sereia mergulha de volta ao mar. Ao acordar, o Príncipe acredita que foi salvo por uma das moças.

Determinada em conquistá-lo, ela busca ajuda da bruxa do mar. A Sereia faz um trato para ganhar pernas. O preço é caro: deve perder sua voz. Para tanto, a bruxa corta, dramaticamente, a sua língua.

Até então, podemos entender que o conto gira em torno da ideia do auto-sacrifício e tudo o que passamos ou do que desistimos por amor. A Sereia abdica de tanto que sentimos pena dela. Choramos com ela.

E como se não bastasse ter a língua cortada, ao ganhar pernas, ela sente ainda mais dor. A cada passo que dá, é como se levasse facadas na cauda. Essa é mais uma conexão com a vida de Andersen: a dor do amor que a Pequena Sereia sente, foi a dor que ele sentiu a vida inteira.

“Every step you take will feel as if you were treading upon knife blades so sharp that blood must flow. I am willing to help you, but are you willing to suffer all this?

“Yes,” the little mermaid said in a trembling voice, as she thought of the Prince and of gaining a human soul.”

Quando ele escreveu o conto, tinha 32 anos e já havia se apaixonado duas vezes — e, pesarosamente, suas duas experiências amorosas foram muito infelizes. Embora tenha conseguido reconhecimento mesmo com tantas dificuldades, ele não se adaptava à Copenhagem. O seu amor fora dispensado porque ele se dedicava à escrita em tempo integral e era pobre, muito pobre.

A mesma frustração acontece com a Sereia: ela não pode dizer ao príncipe o que sente, pois o ama em silêncio. Ele não pertencia à elite da sociedade, então estava à margem da vida social e não podia se casar com quem amava.

“But a mermaid has no tears, and therefore she suffers so much more.”

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Depois de ter sua língua cortada e sentir dores insuportável nas pernas, a Sereia finalmente chega à praia, quando ouve sinos da igreja e imediatamente assiste ao casamento do príncipe com a jovem (que ele se apaixonou pensando ter sido quem o salvou).

O Príncipe jamais a viu durante todo esse tempo.

Assim como Andersen assistiu a seus amores irem embora, a Sereia assiste, de coração partido, ao barco partir levando todos os sonhos de uma vida ao lado dele. Tudo termina bem para o Príncipe, mas não para ela.

Agora, ela sabe que o nascer do sol trará sua morte e ela se transformará em espuma do mar.

No fim do conto, a Pequena Sereia é desintegrada e vira espuma, mas em vez de desaparecer, ela sente o calor do sol. Ela é levada pelas filhas do ar (daí a inspiração para o nome bíblico Ariel, “anjo do ar”).

“The little mermaid lifted her glorified eyes towards the sun, and felt them, for the first time, filling with tears. On the ship, in which she had left the prince, there were life and noise; she saw him and his beautiful bride searching for her; sorrowfully they gazed at the pearly foam, as if they knew she had thrown herself into the waves.”

Ela morre, mas, como agiu por amor, é recompensada com a imortalidade. Esse é o consolo da Pequena Sereia. A tragédia dela é a mesma tragédia da vida de Andersen: apesar do sucesso como escritor, ele viveu a tragédia de alguém que viveu sozinho, sem amor.
Assim como a Pequena Sereia, Hans Christian Andersen se tornou imortal — nas páginas de algumas das mais importantes obras literárias de todos os tempos. E é claro, nos nossos corações.

[Texto publicado originalmente na Confeitaria mag]

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