O Congelamento das Virtudes

(post enviado pelo leitor Gabriel Affatato)

Ocorre-me, com frequência, uma ansiedade quanto ao século XXI. Por mais ridículo que possa parecer, mas, de fato, é um determinado medo quanto ao pressentimento de que temos algo grande em nossas mãos. A comunicação hoje se mostra muito mais ampla, democratizada e poderosa. O imaginário social se apresenta cada vez mais fragmentado e diversificado o que, sem dúvida alguma, gera benefícios e ao mesmo tempo algumas preocupações quanto ao futuro disso tudo. Porém, uma coisa é certa. Talvez a humanidade esteja ineditamente perto de admitir a complexidade de seu todo, admitindo uma estrutura mais abstrata à interpretação do mundo e de seus conflitos. Portanto, em meio a isso, vem-me uma expectativa até um pouco otimista quanto aos aparatos de informação em geral, na compreensão de que os mesmos estão caminhando para um formato mais aberto em termos de participação. Porém, o que me preocupa quando falamos em meios de comunicação é a tendência cientificista que tem se tomado nas últimas décadas, sobretudo quanto ao jornalismo em geral.

Estabeleceu-se nos jornais ao redor do mundo uma tendência que opera a partir do mito da imparcialidade, que conferiu à atividade do repórter um caráter mais pragmático e objetivo. Deseja-se os fatos, tão somente os fatos, crus, secos e míopes. O que nunca deixa de ser razoável, levando em consideração que em um trabalho intelectual a passionalidade é um fator que, em excesso, é capaz de causar prejuízos enormes. Não obstante, traçou-se uma divisão radical entre literatura e jornalismo que, talvez, tenha tirado da sociedade a chance de preservar um campo aonde a criatividade pudesse se desenvolver com mais poder. Como toda estrutura de pensamento, a criatividade é um processo a ser trabalhado e incentivado em todos os meios culturais de uma sociedade – caso seja o objetivo incentivar a mesma. Todavia, deu-se preferência aos relatos curtos e pragmáticos, às informações instantâneas, ao conhecimento dado em doses homeopáticas. Muitas vezes o resultado de tal tendência é, ao final das contas, uma realidade medíocre.

Não que eu exija a qualidade reflexiva às notícias veiculadas diariamente. Cabe mais a um cientista social do que a um jornalista problematizar a realidade com alto teor crítico. Também pontuo a necessidade de se admitir a existência de diferentes contextos de avaliação em que o ofício jornalístico, na minha opinião, devesse ser mais subjetivo na forma como se expressa. Justamente porque entendo que falta às mídias da contemporaneidade um olhar mais artístico da realidade. Muito longe de defender o sumiço dos plantões de notícia e da característica imediatista dos leitores de hoje. Contexto, na verdade, um certo padrão imposto ao formato como muitas coisas são expressadas atualmente e da forma como o conhecimento tem se mostrado cada vez menos humano na virada de um século marcado pelas tendências robóticas. Na corrida do desenvolvimento temo pela desvalorização do diletantismo e do hedonismo no comportamento intelectual da nossa atual civilização, tão fanaticamente devota à ciência e aos avanços tecnológicos.

O esfriamento do conhecimento, em geral, já se mostra nas escolas que, pelo menos no Brasil, basicamente, desistiram de ensinar algo realmente útil aos estudantes, curvando-se ao pragmatismo dos cursinhos pré-vestibular que dão ao aluno um aprendizado retaliado e pouco construtivo. Sem falar que, em geral, a arte é ignorada em quase todos os currículos de ensino médio.

Isso é um padrão amplo que tem-se apresentado cada vez mais enraizado na forma como o mundo funciona. A expressão mais evidente de todo esse complexo talvez esteja nas páginas dos jornais diários que compramos nas bancas de revista. Nota-se que é tolhido do jornalista o talento literário e a descrição pessoal que o mesmo é capaz de adquirir a cerca de um determinado fato a ser noticiado. Cabe a ele somente relatar o que ocorreu, limitando a expressão do que ele, de fato, viu. Tem-se a ilusória ideia de que, em uma mídia escrita, aquele que é incumbido de relatar um acontecimento tem que agir imparcialmente e transmitir, tal uma máquina fotográfica, o que ele presenciou. Ignora-se completamente que foi um ser humano que vivenciou um acontecimento em questão e que também foi influenciado pelo mesmo. O jornalistas não mais procuram um texto que seja quente. São capazes apenas de produzir um corpo frio, sem uma única gota de sangue sequer circulando pelas veias.

Boa parte da história da nossa cultura foi produzida a partir dos brilhantes relatos que geniais jornalistas foram capazes de criar ao longo dos anos. A vivacidade da escrita sempre foi e sempre será uma das razões pela qual nós buscamos preservar a realidade e, de alguma forma, registrá-la. Porém, pouco convém à sociedade a preservação de algo que seja frio e pouco excitante. Não a toa que Paulo Leminski já dizia que todos os povos do mundo amam seus poetas ao mesmo tempo em que nenhuma nação seria capaz de amar seus cientistas. E claro que, o problema em si não se encontra no conteúdo expressado mas sim na forma como ele é transmitido. Um dos possíveis resultados de tais pontos seria o irônico desenvolvimento de uma humanidade que recebe de forma ampla o conhecimento mas que, ao mesmo tempo, é incapaz de valorizar e armazenar o mesmo, justamente porque não foi tocada por ele. A memória do homem é exigente e extremamente ligada às emoções.

Dizia Hunter S. Thompson que ,“(…) a verdade absoluta é uma comodidade muito rara e perigosa no contexto do jornalismo profissional.”, este que foi um dos jornalistas mais importantes do século XX, que cunhou o movimento do Gonzo Jornalístico, que tinha por objetivo justamente a expressão existencial subjetiva do que viria a ser relatado, dando ao leitor uma importante chance de vivenciar o que ocorreu, tirando ele das medíocres poltronas da terceira pessoa, lançando-o quase que presencialmente ao ocorrido. Marca estrutural da contracultura ocidental, Thompson lançou mão da defesa de uma escrita mais sincera, promovendo uma real interação com o conteúdo exibido. De fato um escritor caracterizado por se encontrar num contexto de contestação dos valores tradicionais estadunidenses que serviam, principalmente, ao conservadorismo de uma classe média reacionária, guiada pela caravana de Nixon e de tantos outros republicanos que se valiam da limitação e do medo das pessoas para promover políticas retrógradas. Ele foi capaz de registrar os sentimentos de uma geração.

Aqui no Brasil temos um campo fértil para essa tendência. Literalmente um campo. Surpreende-me como cada vez mais a mídia esportiva tem se distanciado da emoção e do calor do futebol, cujo valor intrínseco é justamente a paixão. As análises futebolísticas de hoje em dia desprezam todo o romance que se enquadra pelos gramados a fora. O torcedor não mais se enxerga em meio a análises frias e calculistas, que estudam de forma bitolada os esquemas táticos empregados, limitando-se à interpretação estratégica do jogo e esquecendo o real propósito do esporte.

E também, se formos avaliar mais atentamente, o real valor de se dar espaços ao futebol nas páginas de um periódico é tão somente a expressão de uma massa que se envolve com os movimentos que se fazem ao longo de uma disputa intensa entre dois times. Tirando isso, o valor intelectual do futebol, uma vez como jogo, é mínimo, pois o mesmo é virtuoso, antes de tudo, no amor que é capaz de irradiar e não na inteligência que é capaz de produzir.

Parece que nos esquecemos da forma como o brasileiro aprendeu a amar esse esporte, que foi justamente a partir das palavras de figuras como Armando Nogueira, Nelson Rodrigues e Henrique Chaparro. A crônica cada vez mais escanteada em meio a esse processo que visa encher o leitor de informações aleatórias e pouco envolventes.

Falta aos tempos atuais um retrato que motive as pessoas a botarem em prática seus talentos. Cada vez mais tem se dado espaço para o artista e cada vez menos para o exercício da arte. O que nos cerca é mecânico e objetivo para além do necessário, excluindo, justamente, uma necessidade maior, que abrange às razões para as quais o ser humano produz conhecimento. Existe em cada cultura uma necessidade vital de se transmitir o que as pessoas escutam na rua, ao pisar na calçada. A individualização radical e o isolamento do sujeito perante o ambiente social tem se dado na forma como as mídias tem se expressado, representando cada vez menos a realidade factual e concreta que é registrada diariamente por uma geração que tem plenas capacidades de estruturar em cada pessoa um enorme incentivo a se desenvolver uma vez como artista. A vida cada vez mais prosaica e o cotidiano cada vez menos poético são os frutos de uma tendência que valoriza a utilidade funcional das coisas para além da utilidade existencial que elas já possuem naturalmente.

 

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