A Bruxa: Polêmica, Satanismo e a Ascensão da Mulher.

Por Nano Fregonese

Alerta: esse texto contém spoilers e conteúdo profano.

 

Quando o falatório sobre o filme de terror A Bruxa começou, uma espécie de alerta soou na minha cabeça, um aviso de que vinha treta pela frente.

Então o Stephen King em pessoa disse que havia se borrado durante a sessão e um templo satânico rasgou elogios à obra. Foi o que bastou para eu ter certeza que uma onda de confusão viria.

Explico:

Stephen King é um cara que enxerga o horror em tudo, desde que era criança. A mente dele funciona assim, traduzindo o mundano em algo assustador, enxergando o macabro de uma forma muito mais profunda e pura do que o resto de nós. Assim, quando ele disse que tinha se assustado com esse filme, estava claro que não dava pra esperar uma obra tradicional do gênero.

Além disso, o elogio de um templo satânico pode ser facilmente mal interpretado por pessoas que não possuem contato com a ideologia. Ainda mais quando é um templo satânico ateísta.

Veja bem, o satanismo, ao contrário da crença popular, não envolve rituais sobrenaturais com o intuito de abrir as portas do inferno e trazer Belzebu para reinar na Terra. O satanismo é uma filosofia de vida que nega uma série de preceitos cristãos em prol da liberdade.

Em outras palavras, o filme tinha tudo para ser mais artístico e simbólico do que aterrorizante.

E, com isso em mente, lá fui eu conferir.

Ao longo da projeção dava pra ouvir suspiros de impaciência e até mesmos alguns risinhos espalhados. O que é compreensível, já que a publicidade do filme o vendeu como uma história comum de terror. Não me admira que as pessoas esperassem por sustos, pulos e imagens de monstros possuídos por espíritos das trevas.

E não me admira a frustração gigantesca quando nada disso aconteceu.

O filme é lento, sem os clichês aos quais estamos acostumados – e que seguem nos fazendo pular da poltrona. A fotografia cria uma aura incômoda e claustrofóbica durante todo o longa e o som é extremamente eficiente em nos deixar angustiados.

Isso tudo nos faz ansiar por algum clímax que exploda toda a carga de tensão acumulada, mas esse clímax vem de uma forma tão ousada que oferece catarse a poucas pessoas da plateia.

Pelo contrário. O clímax incomoda e tira da zona de conforto. Ele faz você repensar suas crenças. Nisso, a experiência de assistir A Bruxa me remeteu à experiência de assistir Sangue Negro, por exemplo.

 

MAS, AFINAL, O FILME É DE DAR MEDO?

Sim.

A Bruxa é um dos filmes mais assustadores do cinema de horror recente, mas ele assusta por uma razão diferente daquela que esperamos. E, para explicar melhor esse argumento, vou ter que dar certos SPOILERS.

Então, se você não viu o filme ou se preocupa com esse tipo de informação, NÃO PROSSIGA.

A história começa com uma família de colonos sendo julgada por seus pares, em uma vila da Nova Inglaterra. Há uma discussão que não entendemos muito bem e a família é expulsa da comunidade – fato que é bem recebido pelo patriarca, já que ele considera seus vizinhos como seguidores menores de Deus.

Somos deixados no escuro quanto às razões da expulsão, mas fica muito claro que estamos diante de uma família regida pela religião, que vê no divino a verdadeira autoridade e único modo de vida. Também fica claro o incômodo e medo da filha mais velha, Thomasin, com a situação. Incômodo este que se mostra totalmente justificado mais adiante.

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A família se estabelece em uma clareira, à beira de uma floresta, e tenta sobreviver através da plantação de milho e da criação de alguns poucos animais. A vida é dura, sem cor e se passa em uma tensão constante, já que a possibilidade de ir para o inferno é tida não só como real, mas como provável.

Imagine-se participando de um Big Brother cósmico onde é necessário seguir uma série de preceitos radicais, baseados em culpa e no qual, quando eliminado, você não apenas morre, mas também vai para um local de dor, fogo, miséria, desespero e enxofre por toda a eternidade.

É esse o peso que cai sobre os personagens.

Agora imagine que você passa por tudo isso que eu falei acima, além de sofrer moralmente nas mãos de uma mãe abusiva, de ser acusada e punida por atitudes que o seu pai fanático, hipócrita e covarde realizou e encontrar carinho apenas em seu irmão mais novo – que por acaso tem desejos incestuosos com você. Foda né?

Mas piora: você também passa a ser acusada de bruxaria.

Essa é a história de Thomasin, a primogênita da família.

Mas também é a história de como a sociedade humilhou, massacrou e dominou mulheres ao longo de incontáveis gerações. Tudo com base em uma noção deturpada de que a mulher é a culpada pelo mal do mundo, que existe nela uma espécie de falha intrínseca que joga os homens em tentação e arruína outras mulheres “de bem”. A mulher carrega a semente do mal e, se não for purificada por Deus e trilhar a vida que se espera dela, trará desgraça, tristeza e ruína a todos que tocar.

Não à toa, ao final de todas as dificuldades e provações, Thomasin se entrega às trevas – ou melhor, se afasta das noções religiosas da época. Por que continuar sofrendo sendo que as amarras que a prendiam agora foram cortadas? Por que condenar a si mesma a uma vida de martírio, quando isso não trouxe nenhum bem verdadeiro? Não seria melhor trilhar o próprio caminho?

Não seria melhor ter as próprias conquistas e provar o sabor da manteiga, vestir um belo vestido, conhecer o mundo e viver deliciosamente?

Não é para isso que ficamos até mais tarde em nossas agências e escritórios, afinal? Para ter meios de viver deliciosamente (nem que apenas aos finais de semana)?

Então, ao final da trama, quando Thomasin toma seu lugar em um sabá negro, voltamos à interpretação de que satã não passa de uma metáfora para a liberdade. Aí está o motivo de tanto elogio por parte de templos satânicos.

E também entendemos o simbolismo da cena final, na qual Thomasin não vai ao inferno, mas, ao invés disso, alça voo. Finalmente livre.

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A Bruxa é um símbolo para a injustiça, abuso e domínio que as mulheres têm sofrido ao longo da história. E, por essa razão, me deixou apavorado. Porque, quando os créditos finais finalmente surgiram, eu ouvi um monte de gente dizer que o filme era uma porcaria. Vi pessoas ofendidas com o fato de a protagonista ter abandonado um padrão que só a fez sofrer. Vi jovens xingando Thomasin, sem se preocupar em lançar um olhar mais questionador ou analítico ao que tinham visto.

Eu me assustei porque vi, na tela, a semente do pensamento que tenta justificar a inferioridade feminina e a crença de que não podemos questionar a ordem imposta sob pena de irmos para uma prisão eterna.

Mas eu me assustei ainda mais por perceber que, ainda hoje, há muita gente que se sente mais confortável em ver uma mulher ser vítima do que senhora da própria alma.

 

NÃO CREIO EM BRUXAS, MAS QUE ELAS EXISTEM, EXISTEM.

Mas e quanto à tal Bruxa do título? Ela existe mesmo?

Isso fica por conta dos seus olhos. Da sua interpretação.

Há, sim, uma bruxa em tela. E ela protagoniza algumas das cenas mais macabras e incômodas do filme. Muito embora o horror seja muito mais sugerido do que mostrado de fato.

Eu preferi enxergar a “vilã” da história como uma metáfora dos medos e da culpa de todos os membros da família. O bebê sumiu? Foi a bruxa. A colheita foi um fracasso? Foi a Bruxa. Uma mãe deprimida e enciumada da filha finalmente perde a cabeça? Foi a bruxa.

Afinal de contas, é muito mais fácil colocar a culpa NO Demônio do que enfrentar os PRÓPRIOS demônios, não?

Mas A Bruxa é o tipo de obra que será recebida de maneira diferente por cada um de seus espectadores, de acordo com as referências, bloqueios e repertório de cada um. E não há muito o que fazer a não ser entender que algumas pessoas irão adorar a obra enquanto outras vão detestar… você só não vai ficar indiferente a ela.

Amém!

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