Uma breve reflexão sobre ferramentas digitais e lavagem de dinheiro

Nas sábias palavras do escritor britânico Samuel Johnson: “só há duas certezas na vida: a morte e os impostos”. Ainda assim, são as duas certezas que muitos mais tentam burlar.

Certamente a tecnologia tem exercido um papel interessante em ambos os casos; porém, este texto visa discutir sua atuação na manipulação do fluxo financeiro de origem ilícita. Fazendo breve uma longa história, como a digitalização das relações financeiras abriu caminho para a ocultação da origem de dinheiro ilícito.

Deixando seu dinheiro limpinho

Existem duas teorias para a origem do termo “lavagem de dinheiro”: uma atribui sua criação ao jornal The Guardian (um dinheiro “sujo” precisaria ser “limpo”). Uma versão mais mafiosa remete a Al Capone, que para dar legitimidade ao dinheiro ganho com o contrabando de bebidas alcoólicas e prostituição, adquiriu uma rede de lavanderias em Chicago (Sanitary Cleaning Shops Inc.).

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Al Capone, honesto proprietário da Sanitary Cleaning Shops Inc.

 

Para quem nunca pesquisou sobre esta prática, grosso modo a lavagem de dinheiro serve para pegar uma quantia ganha por meios ilícitos, como corrupção, tráfico, contrabando, etc – que, portanto, não poderia ser gasta, já que não haveria como justificar sua origem – e mascará-la como se fosse uma receita obtida legalmente, inclusive com o pagamento de impostos sobre o modelo de negócio lícito usado para isto.

Para efeito ilustrativo, vamos supor que o hipotético Sr. Calamar recebeu R$ 100 mil em dinheiro, fruto de uma transação corrupta. Ele não poderia simplesmente depositar esse dinheiro em sua conta pois, na melhor das hipóteses, nosso amigo Leão, do Imposto de Renda, identificaria uma receita sem origem determinada. Aliás, desde 2016, operações de pessoas físicas acima de R$ 2 mil necessitam ser comunicados pelos bancos à Receita Federal.

O nobre senhor pode, então, esconder este dinheiro das autoridades brasileiras (levando para o exterior, depositando em contas secretas, em empresas, fantasmas ou não, igrejas..), realizar compras em dinheiro de bens não financeiros (roupas, jóias, viagens) ou tentar legitimar a origem do dinheiro em modelos comerciais cuja auditoria financeira externa é mais complicada.

A máfia italiana em Nova Iorque justificava sua receita identificando-a como resultados financeiros extremamente positivos de suas redes de restaurante. Atualmente, empresas de serviço (consultorias, escritórios de advocacia, entre outros) e empresas com grande movimentação em dinheiro (restaurantes, postos de gasolina, etc) atuam da mesma maneira. Com serviços de fachada, o fluxo monetário é autenticado.

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Ok, mas onde entra o ambiente digital nisso?

Sem spoilers comprometedores para quem ainda não assistiu a série, no episódio “Phoenix”, da segunda temporada de Breaking Bad, Walter Jr., filho do protagonista com câncer, publica um website – http://www.savewalterwhite.com –  para que qualquer pessoa possa fazer doações para ajudar seu pai no tratamento contra a doença. Claro que o cúmplice advogado Saul Goodman viu aí uma ótima oportunidade para transformar os dólares da metanfetamina em autênticas e bondosas colaborações vindas de várias partes do mundo.

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Na vida real, com um CPF ou CNPJ qualquer (inclusive falso, mas que respeite o algoritmo de geração do número), qualquer indivíduo pode solicitar a geração de um boleto bancário de doação em websites de “vaquinhas online” (ou alguns em sua versão mais moderna, crowdfunding, sem que haja efetivamente planos de transformar uma ideia em produto).

De posse deste boleto, dirige-se a uma agência bancária, faz-se o pagamento com o dinheiro ilícito e, BANG, o recebedor da doação acabou de ter uma renda, sem origem determinada, sem a possibilidade de rastreamento e com a legitimidade do recebimento – já que o recebedor, a princípio, não poderia ser responsabilizado pela origem ilegal do dinheiro de alguma pessoa aleatória que resolveu fazer a doação.

Investigadores também tentam entender como moedas virtuais podem ser usadas para a mesma finalidade.

No auge do mundo virtual Second Life, a relação cambial entre Lindens (a moeda interna) e dinheiro real foi a maior aplicação prática, até então, da extrema digitalização de valores. Mais recentemente, os bitcoins – uma moeda virtual criptografada; resumidamente, com alta restrição de segurança – tornaram-se referência em transações virtuais, principalmente quando passaram a ser aceitos para compra de livros a apartamentos. Sem querer entrar em detalhes técnicos / operacionais, deixo aqui um site que traz informações detalhadas de como o Bitcoin pode ser usado para lavagem de dinheiro.

 

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Em 2016, uma juíza da Flórida (EUA) entendeu que “bitcoins não podem ser equiparados a dinheiro” no primeiro caso público de lavagem de dinheiro através de moedas virtuais criptografadas. Aliás, o Bitcoin não é a única moeda virtual baseada em criptografia, na página http://coinmarketcap.com é possível acompanhar a taxa de câmbio de, literalmente, uma centena delas.

Segundo o website Canal Ciências Criminais, até o momento não houve nenhum registro de lavagem de dinheiro com o uso de moedas virtuais ou similares no Brasil. Mas, em um país onde magistrados têm pouca ou nenhuma familiaridade com novas tecnologias (e pouca vontade de tê-la) e com sérias restrições para investigações, há um considerável espaço para utilização de meios digitais como lavadoras de R$, transformados em bits, bytes e doações anônimas.

Quanto dinheiro já deve estar circulando em nossas lavanderias virtuais?

Better call Saul.

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