E se você soubesse a data da sua morte?

Você acordou com uma data na cabeça. Dia, mês e ano.

Não foi uma sensação vaga. Era só fechar os olhos que aparecia de novo. Bem grandão. Um dia, um mês e um ano, direitinho. Era uma data, não havia dúvida.

“Que estranho”.

Ao chegar no trabalho você descobre que não aconteceu só com você. Todo mundo amanheceu com uma data na cabeça e cada um que chegava confirmava a mesma história.

Ninguém entendeu nada. Mas são datas de quê?

A desconfiança pairava no ar desde o início, mas a possibilidade dava até medo de ser cogitada. Mas de fato, em poucos dias o padrão começou a surgir. Entre datas e… óbitos.

“Meu Deus. Todos nós sabemos quando vamos morrer.”

Todos os dias a partir de então, mais ou menos uns 150 mil pobres coitados acordavam com a mesma certeza: “é hoje”.

A humanidade entrou em desespero sem entender o motivo de uma maldição tão cruel como essa. A própria sentença de morte dentro da cabeça. Muitos entraram em depressão profunda. Suicídios vieram aos montes, dos que não conseguiam enfrentar uma vida inteira conscientes da areia que ainda lhe restavam em suas ampulhetas. Essa era a única possibilidade de transgressão à nova regra. Do contrário, a data era aquela e ponto final. Literalmente.

Aos poucos as coisas começaram a mudar.

A morte não vinha mais por  telefonemas no meio da noite. Aquela dilacerante notícia que chegava de supetão, deixou de existir. O ceifador não surpreendia mais ninguém na porta de casa. Dava para ver ele chegando de longe. E a transição de planos não era mais em cortes secos de foice. Era mais um suave fade-in fade-out.

Não era mais anúncio, era teaser.

O luto mudou de lugar e foi parar do lado da frente dos falecimentos. Missas de sétimo dia aconteciam uma semana antes da pessoa morrer. Nos velórios, os homenageados agora participavam em pé mesmo. Partiam sabendo do impacto de suas vidas nas vidas dos outros (ou não).  E para os amigos e parentes, não tinha mais aquela sensação ruim das coisas que ficaram por dizer. Agora, dava. Bater as botas era só o último suspiro protocolar de um ritual maior.

Surgiram as “festas de despedida”. Uns chutavam o balde, outros preferiam reuniões mais íntimas. Ou, por que não, as duas coisas. Fotógrafos e aquelas produtoras de video ganhavam agora mais dinheiro nessa nova modalidade do que em casamentos e bailes de debutante. Slide shows eram frequentes. Memórias eram compartilhadas, testemunhos eram registrados através de inúmeros depoimentos emocionados, histórias incríveis. As festas duravam dias. Quem podia, colocava amigos e parentes hospedados em hotéis para essa maratona emocional. Mas com o tempo começamos a receber convites desse tipo de festa praticamente todos os dias. Tinha até aviso pelo Facebook: “fulano vai partir no dia 14 de maio. Faça uma festa surpresa para ele”. E aí as festas também foram ficando menores, ou pelo menos, mais reservadas.

As questões mais mundanas e burocráticas também mudaram. Heranças ficaram menos traumáticas. Não havia mais dúvidas sobre as vontades do morto. Ou melhor, do futuro morto. Qualquer coisa era só perguntar para o próprio. Patrimônios passaram a ser divididos sem margens para interpretações e maracutaias dos herdeiros.

Anos depois do surgimento das datas, a morte ainda era uma dor. Mas não podíamos negar que agora havia mais conforto e uma paz de espírito maior. Esses “fechamentos” eram raros, mas agora praticamente todo mundo fazia. A data de embarque no nosso cérebro nos fez refletir sobre a viagem, mas também sobre a bagagem. E começamos a embarcar mais em paz, de verdade.

Uma das coisas mais legais foi quando percebemos que, se por um lado era muito ruim saber o dia morte, por outro, era muito bom saber que todos os outros dias… NÃO eram nosso dia de morrer. Bungee-jumps, saltos de pára-quedas e mergulhos com tubarões nunca foram tão populares. Aquele medo de morrer de antigamente só aparecia agora lá no finalzinho da vida. Antes disso, vivíamos destemidamente, como deuses imortais. Viramos embalagens de alma, com datas de validade, que assim como as do supermercado, devem ser consumidas antes de, hãm… azedar, digamos assim.

Os relacionamentos também mudaram drasticamente. Os profissionais e os pessoais.

Por exemplo, entre médicos e pacientes existia agora uma informação nova e vital, que alteraria de forma drástica as prioridades e linhas de tratamentos. Salvar vidas não era mais um conceito apropriado e qualidade de vida passou a fazer muito mais sentido.

Ninguém mais perguntava “Doutor, é grave? Eu vou morrer? Quanto tempo ainda me resta?” Isso tudo a gente já sabia. O negócio agora era eliminar as dores e investir em um corpo saudável para o bungee-jump e cia. Morrer em casa voltou a ser a norma. Pra que insistir no desfribilador, na respiração artificial?

Nas entrevistas de emprego, ninguém perguntava mais onde você achava que estaria dali 5 anos. Era muito melhor perguntar se você ainda estaria por aqui daqui 5 anos.

Mentir virou mecanismo de sobrevivência. Foi só mais adiante que surgiram as medidas protecionistas contra a “discriminação por brevidade”. E durante um razoável período de tempo, fomos a sociedade mais cruel e preconceituosa que já existiu.

Claro, o governo entendia a importância de assegurar nossos direitos, mas também sabia do valor de uma informação como essa. Foi nessa época que desenvolveram o sistema de acompanhamento infantil, com milhares de agentes fazendo “entrevistas” periódicas com as crianças que tinham recém-aprendido a falar, mas que ainda não sabiam mentir.

Populações inteiras eram tabuladas e cada um tinha agora um tracinho marcado na linha do tempo, com começo e fim. E assim, além das classes sociais, criamos as “classes temporais”. Políticos adoravam falar em nome dos menos favorecidos. Não pela sociedade, pelo tempo.

Nas relações pessoais não era muito diferente: ninguém queria se envolver com uma pessoa que eventualmente não estaria mais disponível em breve, muito menos pensar em filhos ou família. Compartilhar sua data com alguém era uma enorme demonstração das suas intenções e do seu grau de comprometimento. Muitos abdicaram de um grande amor por não terem uma razoável “equivalência temporal” com a outra pessoa. Programas matutinos viviam pautando o tópico: “quando é tarde demais para se entregar a um amor?” ou “você teria coragem de iniciar um namoro sabendo que a sua data está próxima?”

Quase dois séculos se passaram e ninguém mais achava estranho a data da morte. As religiões precisaram se adaptar, afinal estávamos predestinados. Foi preciso reinterpretar as coisas, dar um significado para este novo e derradeiro capítulo dentro da história espiritual da humanidade. Propósitos eram indagados com mais frequência já que essas coisas não eram mais adiadas por uma falsa ilusão de tempo infinito. Não dizem que quando você quer que uma coisa realmente aconteça, é preciso colocar prazo? Então, isso era uma coisa que todo mundo tinha.

O tempo virou a medida de tudo, o bem maior. Não tinha prorrogação e o jeito era caprichar até o apito final.  Ficamos mais práticos. Sonhos viravam listinhas para ir ticando logo, ninguém terceirava para o destino. Temos um “deadline” (em inglês fica ótimo, não?).

Paradoxalmente, vidas mais curtas eram mais grandiosas. As mais longas, menos.

Até que um dia aconteceu uma coisa muito louca.

Todo mundo amanheceu sem data nenhuma na cabeça.

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