Os pobres reféns do crachá

Que vivemos em um mundo de aparências não é novidade. Catalisado por esta ferramenta de mídia massiva chamada “internet” e todas as oportunidades de exposição do íntimo humano, não vemos mais pessoas, mas sim personagens de uma vida constantemente televisionada em redes sociais digitais. Claro que este ‘Show de Truman’ também resvalaria no universo corporativo.

Acho muito divertido quando, ao conhecer uma nova pessoa, a primeira pergunta é

– “O que você faz?”.

Confesso que minha redenção é responder:

– “Olha, muitas coisas, brinco com meu cachorro, gosto de ler e escrever, sou nível 40 no jogo Destiny, toco contrabaixo e sei fazer um fricassê de frango que ó, é uma delícia!”.

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Meu fricassê de frango deveria estar no meu portfolio, sério.

O momento “heim?” gerado no interlocutor demonstra o quão importante o emprego se tornou na determinação da credibilidade, solidez e relevância das outras pessoas. Não estou dizendo que o trabalho não é importante e que devemos nos entregar aos prazeres de Dionísio, mas trabalho é diferente de emprego e, mais importante ainda, emprego é diferente do crachá que você leva pra almoçar todo dia naquela praça de alimentação lotada. (Aliás, uma pequena pausa para lembrá-lo de não deixar seu crachá sozinho na mesa quando for almoçar).

Fulano, de tal lugar

O psiquiatra Roberto Shinyashiki tem um texto que, em resumo, explica que o conflito entre essência e aparência é o que impede a verdadeira felicidade. Traduzindo a interpretação para o mundo empresarial, os pobres reféns de seu crachá são aqueles que depositam no seu (temporário) cargo corporativo os elementos que o definem como pessoa. Este cidadão deixa de ser o João, Maria ou Pedro e passa a ser “o João, da Nestlé”, “a Maria, da IBM”, “o Pedro, da Ambev”, onde a marca de seu empregador é a substituição não só de seu sobrenome, mas de sua essência como indivíduo.

Isso é perigoso, muito perigoso.

A mais inofensiva consequência é a forma como as empresas tratam esta nomenclatura de cargos e funções. O fato do “gerente de vendas” ter virado “business development manager” é o menor dos problemas. Adaptado do grande Einstein, duas coisas são infinitas, o universo e a ‘criatividade’ humana na hora de criar cargos que possam ser usados como estandartes em um campo de batalha.

Meta cognitive growth hacker, Business visionary, Creative innovator (sempre em inglês, porque a gente já aprendeu que é mais legal) são alguns dos ‘sobrenomes’ que recebi em cartões de visita.

É piadinha, gente! Tem mais aqui ó: 20 Brutally Accurate Job Titles

Sejamos sinceros, se você é avesso a jargões e capitães-do-óbio (quem for, levanta a mão o/ ), percebe que estas nomenclaturas visam apenas trabalhar o psicológico daquele que recebe o título à medida que o diferencia de todos os outros que fazem a mesma função que ele em outros lugares. Ser um líder em desenvolvimento de novos negócios é chato, todo lugar tem isso, tem um monte de gente que faz isso… ahhhhh, meu amigo, mas não, “aqui eu sou um Jedi Business Inovator! Subverto as regras do universo para quebrar paradigmas, pensar fora da caixa e inovar no crescimento sustentável….”.

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Minha cara de pug quando ouço isso…

Ok, ok, tem gente que valoriza isso, tem gente que realmente se motiva ao atribuir a si mesma uma titulação. Tenhamos, contudo, consciência deste artifício e busquemos utilizá-lo de maneira produtiva e não como escudo nas interações sociais profissionais.

Gerente júnior adjunto de tráfego de correspondência corporativa

Outra consequência, talvez um pouco mais impactante, da importância dada aos cargos na formação de personalidade é a subversão do que se entende como “gerente”. Atualmente, se você deixou de ser estagiário, já virou gerente. Gerentes que gerenciam apenas o Outlook podem acabar por superestimar sua própria capacidade técnica e experiência, levando a conflitos de ego quando há necessidade de se contar com alguém para solucionar algo que este gerente não consegue pela pouca vivência (o que não é “culpa” de ninguém, mas é um fato).

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Gerente que nunca gerenciou nada; Diretor que não dá direções pois não tem equipe para direcionar; são como cerveja sem álcool e açúcar que não adoça.

Mas voltando à vaca fria (já contei que descobri de onde veio essa expressão? =)), o perigo em se tornar “Fulano, da empresa Tal” é que suas conquistas, capacidade e conhecimento podem ficar vinculados à sua atual relação empregatícia. Por esta razão a saída de uma empresa para alguns é tão traumática; os pobres reféns do crachá entendem que não se deixou ali apenas um emprego (que é sempre temporário), mas a identidade, o respeito dos outros e algumas portas que se abriam unicamente pelo logotipo do cartão de visitas.

(Does) Your reputation precedes you (?)

No filme Bastardos Inglórios, a, digamos, ‘capacidade persuasiva’ do sargento Donny Donowitz era amplamente conhecida pelos soldados nazistas, ainda que nunca o tivessem visto. Todos os chamavam de “the Bear Jew”, e sua fama o procedia.

Spoiler + Violence Alert: Este é o trecho do filme onde somos apresentados ao “the Bear Jew”; contém cenas fortes para aqueles que não gostam de ver um crânio sendo golpeado por um taco de baseball.

Miolos à parte, assim deve ser, sua fama deve precedê-lo. A fama construída com conquistas, projetos, criatividade, conhecimento e experiência, independente de seu uniforme, desvinculada daquele que hoje assina sua carteira de trabalho. Trabalhe até você ser apresentado pelo nome e pelos feitos, não pelo crachá ou cartão de visitas que carrega naquele momento.

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