Happy SouthBy

São três da manhã na capital do Texas, faz frio mas não venta, você está com a mesma roupa desde às nove da manhã quando saiu de casa, a mochila agora cheia de panfletos, brindes inúteis e cartões de visita de pessoas que, se tudo der certo, você nunca mais vai ver na vida. Las Cazuelas, o pé sujo mexicano que você já chama de seu, está sempre aberto para o último taco antes de dormir. O seu estômago já não aguenta mais a dieta baseada em Bud Light, barras de cereal KIND, biscoitos belvitta e iogurtes noosa, distribuídos generosamente pelas ruas, dentro de ecobags promocionais, na saída das festas. Você queria apenas um suco de laranja com gosto de laranja. Ou uma salada que não tivesse mais molho do que folhas verdes. A América e seus problemas de primeiro mundo, à base de condimentos e conservantes. Nas casas, você vê todas as bugigangas que não couberam dentro dos cômodos se espalhar pelos quintais, além das portas. Você vê as SUVs parecerem carros de brinquedo perto das enormes pick-ups que os texanos gostam de dirigir. Você não consegue comprar um chocolate, as opções são muitas e nenhuma parece te satisfazer completamente. Pela quinta noite seguida, você vai dormir exausta, bêbada e rouca, e acordar um par de horas depois para uma maratona de conteúdos e ideias supra estimulantes. Você não sabe se deve anotar o que viu, o que pensou, ou apenas tirar fotos e deixar para refletir mais tarde, e esquecer de pensar. Você não lembra de beber água e mata sua sede com o vinho barato da festa de uma empresa de mídia canadense ou de uma start-up de Singapura ou de uma revista-site-app-plataforma voltada para meninas de catorze a vinte e dois anos. Os garçons te olham com desprezo. Você invadiu aquela cidade. Fez o preço do estacionamento subir de cinco para vinte e oito dólares, fez os restaurantes lotarem, fez as filas se multiplicarem, os preços das acomodações explodirem. Você vê um homem em farrapos na rua. Ele não saiu da mesma festa que você, ele se arrasta até o abrigo para sem-tetos que fica em Downtown, ao lado dos restaurantes chiques e do centro de convenções onde acontece os shows, as palestras, os encontros. Você não consegue imaginar aquela cidade sem as trezentas mil pessoas que vieram para este festival. Contempla o homem cambaleante, sua pele curtida e seus jeans sujos, que contrastam com a ecobag imaculada da HBO em seu ombro. Ele passa por você e grita “who let the dogs out?” Você não sabe o que está fazendo aqui. Tem preguiça de networking, brindes promocionais, futurologia. Você não consegue se emocionar com os robôs existencialistas. Você passa pela manada de japoneses atados aos seus dispositivos eletrônicos e gostaria de abraçá-los. Você tem vergonha dos movimentos necessários para performar a hyper realidade virtual aumentada mista. Os vídeos 360º só te fazem desejar estar com um bom livro em fonte dez em um cabana inóspita no fim da Terra. E no entanto, você está aqui. Você faz parte de uma elite que não vai ter seus empregos comoditizados, suas habilidades automatizadas. É eternamente responsável pelos seus privilégios. Você e seu carregador de celular, seu notebook, sua bateria extra, seu celular, seu fonte de ouvido, seu HD externo, sua go pro, sua câmera de lente profissional. Seus quilos em excesso de carboidratos e aço. O futuro se aproxima. Você ouve os galopes de um mundo em que a tecnologia se move rápido e os humanos andam cada vez mais devagar. Estão perdidos. Você decide pegar um táxi pra casa. O motorista, um etíope simpático, atravessa as conversas sobre o tempo e a política, e te dá conselhos para uma vida plena. Ele tem pena de você. Você acorda do transe distópico e olha para os olhos do taxista. Ele poderia ter sido um pastor na Etiópia, ou um professor, ou um chefe de Estado, mas preferiu distribuir sabedoria para os incautos do mundo desenvolvido. Você gostaria de lembrar daquelas palavras. Mas você guardou apenas o calor das mãos daquele senhor que te cumprimentou com os dez dedos e as duas palmas quentes e ásperas. Ele te deseja uma boa vida. Quando os carros forem auto-dirigíveis e os motoristas se tornarem obsoletos, talvez a máquina identifique seu momento de nostalgia e toque sua canção favorita em uma madrugada como essa. Talvez a inteligência artificial aprenda a te consolar sem precisar de calor e pele. Mas você não entende de futuro. Não quer conhecer pós-humanos. Você se agarra a este pequeno momento de ternura e conexão humana. Guarda essa faísca com cada memória que faz dessa cidade única. Você deseja que este motorista, o homem em farrapos, os jovens garçons mantenham Austin absurda. E ano que vem você sabe que volta.

Publicado originalmente no Medium da Agatha.

agatha kim
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