Clube de Campo e Bala Perdida

1993. Eu, 23 anos, recém- selecionada como trainee de vendas da Nestlé.

Seria um ano de trabalho em supermercados, padarias, mercadinhos, para depois voltar ao escritório e assumir o marketing de uma das marcas da empresa, já com alguma experiência do que é vender na prática o que se cria nas salas de reunião.

Admito hoje o que não podia dizer na época. Estava que era puro desânimo. Imagine, ficar um ano zanzando de carro pela cidade, sem nenhum conforto, me esfalfando para vender caixas de cereais, biscoitos, cafés, no verão escaldante de São Paulo.

Depois de alguns meses como promotora de vendas, aquela que limpava gôndolas, pegava caixas bem pesadas no estoque, arrumava produtos nas prateleiras, etiquetava preços, vestindo avental e espanador – naquela época não existia código de barras – finalmente assumi uma área como vendedora. E fui parar lá longe, na periferia da zona sul de São Paulo.

Não sei como funciona hoje, mas naquela época, o ano como trainee era um pedágio em que davam o osso pra gente mastigar, em um esquema meio militar: só quem sobrevive segue adiante.

Dos meus quase cem clientes, a maioria eram padarias e mercadinhos xexelentos de 1 ou 2 caixas, em endereços que simplesmente não constavam no guia de ruas. Ruas e vielas precárias, onde a recomendação dos próprios clientes era a de não me demorar, fazer o que tinha que fazer rapidamente e me mandar antes que a bandidagem saísse para trabalhar.

Ao final de alguns meses, estava exausta daquela rotina maçante e prestes a jogar o avental, literalmente, quando meu supervisor avisou:– Você acaba de ganhar mais um cliente. O Supermercado Clube de Campo!

Um supermercado em um Clube de Campo! Que maravilha! Um oásis na minha rotina. Um respiro!  Já imaginei um simpático gramado, um mercadinho simples dentro do clube, onde poderia almoçar com certo prazer.

No dia da visita, fui em direção à Diadema e, na minha ingenuidade, não atinei que Clube de Campo simpático e Diadema não combinavam.

Fui indo, indo, indo, cada vez mais para o fundão. Até que, de repente, avistei o supermercado no meio de uma serra pelada poeirenta, coalhada de gente e cachorros esquálidos. Uma construção paupérrima cravejada de balas, com segurança armada de fuzil na porta.

Foi a gota d´água. Sentei-me na calçada em frente ao mercado e desatei a chorar com a cabeça entre as pernas. Após alguns minutos chamando a atenção de todos na rua, entrei no estabelecimento. Fui recebida pelos dois sócios: um açougueiro, com avental ensanguentado e facão na mão. E um senhor completamente banguela, com revólver na cintura.

Nada amistosos, os dois logo avisaram:– A menina vai deixar a gente na mão, não vai aguentar o tranco. Aqui não vai ter venda pra você. Nem adianta voltar.

Fui ao supermercado Clube de Campo religiosamente por semanas a fio, sem vender um grão de café, um biscoito. Arrumando aquelas prateleiras sob o olhar desconfiado do Sr. José, o banguela.

Um dia, o José grita lá da sua salinha no mezanino:– Ô, Nestlé, pode fechar uma venda aí, de cereais. Mas não abusa!

O Supermercado Clube de Campo tornou-se meu maior cliente, e o the best. Com ele vendi muito, bati metas e até ganhei um concurso de vendas.

As visitas ao Clube de Campo tornaram-se um prazer, uma janela acolhedora para os meus dias, pelas conversas que passei a ter com o José, um senhor simples, imigrante nordestino que havia prosperado à custa de muito trabalho, e que sentia um grande prazer nas conversas com uma jovem esforçada e entusiasmada pela vida. Aprendemos muito juntos, um sobre o mundo do outro.

Fui tratada sempre com muito respeito e carinho pelos dois, que ao seu modo tosco, cuidavam de mim, zelando pela minha segurança ao chegar e sair do bairro.

Meses depois recebi a notícia da minha tão esperada transferência para o marketing, no escritório da Nestlé. Não consegui me despedir de todos os clientes, eram muitos, mas fiz questão de ir à Diadema, dar um abraço nos meus amigos.

Sei que hoje o bairro da Serraria é outra coisa e também soube que existe um tal Supermercado Club de Campo (com b mudo mesmo) bem moderno por lá. Será o mesmo? Espero que sim. Eles bem que merecem.


Texto originalmente extraído do blog Maleta Amarela

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