Jogos e livros têm algo em comum? Um breve passeio por ideias da teoria literária

Adoro ler. Literatura é um combustível fundamental no meu cotidiano. Sempre que alguém de confiança indica um livro, lá vou eu atrás do conteúdo. Apesar de não ser escritor, me interesso muito em estudar algumas ideias da teoria literária.

Ano passado escrevi junto com meu amigo Felipe Mello um livro chamado Game Cultura. Em um dos capítulos, dedicamos algumas páginas para os entrelaçamentos das questões narrativas e os games. Desse material, saiu a ideia desse post que foi escrito a quatro mãos. Ele está dividido em algumas partes e, como bom material que flerta com o texto acadêmico, possui referências bibliográficas no final.

A) O poder da narrativa

A narrativa é uma das componentes fundamentais da existência humana. É um elemento basilar e estruturante da nossa cultura e sociedade. Esteve presente em volta das fogueiras das sociedades antigas e das culturas tribais, passada oralmente de geração a geração. Esteve presente no nascimento da História clássica (na figura de Heródoto), esteve presente na epopeia grega, nos romances medievais de cavalaria, na cultura popular.

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Está presente na literatura, no cinema, no teatro, nos games etc. Em suas formas mais antigas, as narrativas tiveram um caráter fundamentalmente oral, coletivo e pedagógico/moral. Era um substrato importante da transmissão das experiências culturais de uma dada sociedade ou grupo, garantindo, assim, a (re)produção da vida social. Em suas formas mais “complexas”, que estão presentes nas sociedades modernas, a narrativa é, em oposição aos formatos antigos, escrita, individualista e voltada para o entretenimento e/ou fruição artística.

Independente desses diferentes formatos e funções, a narrativa sempre teve como elemento fundamental a figura do narrador. Afinal, é ele quem recolhe as experiências sociais e dá a elas um formato narrativo (BACCEGA, 2012).

Há, no entanto, na sociedade contemporânea, uma mudança nas formas narrativas derivada do impacto dos meios de comunicação modernos e das novas tecnologias digitais. Em linhas gerais, essa mudança se expressa na crescente fragmentação dos relatos; na hibridização de gêneros narrativos, de códigos linguísticos e de formatos discursivos; na interconexão entre linguagens digitais e linguagens tradicionais.

B) Questões de verossimilhança

Conforme nos mostra a teoria literária, uma das características fundamentais para a compreensão de um bom produto narrativo ficcional é a de verossimilhança. Em oposição ao verdadeiro (a realidade), a verossimilhança alude aquilo que no interior de dada narrativa é plausível. Ou seja, a narrativa ficcional pode conter elementos fantásticos e sobrenaturais e ser consumido de forma natural sem nenhum impedimento, uma vez que o que se apresenta no jogo é considerado verossímil, passível de ter ocorrido no plano ficcional.

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Se num conto de fantasia nos deparamos com dragões, alienígenas e monstros não nos espantamos, tampouco consideramos o conto equivocado ou ruim por não corresponder à verdade objetiva dos fatos. Isso porque estamos considerando os personagens, fatos e coisas, presentes nesse conto, no interior de sua narrativa. O leitor sabe que está lendo um conto de fantasia e espera que nele aconteça fatos fantásticos. Notamos um problema (ou ruído) quando há uma ruptura narrativa causando um desvio de expectativa por parte do leitor.

Daqui podemos derivar a noção de contrato de leitura que ilumina o fato de que o leitor lerá dada obra a partir de seu gênero e de seu formato e dela terá expectativas correspondentes ao que ele já conhece de antemão acerca deste gênero e formato.

Nesse sentido, Baccega (2012, p.1301) nos ensina que cada produto ficcional, seja ele uma telenovela, um livro, ou um game, “contém na concretude de seu desenvolvimento a verdade que se constitui nele”. Isso significa que toda narrativa ficcional cria suas regras e leis a partir das quais será lida e interpretada pelo seu interlocutor. Em outras palavras: a narrativa ficcional “levanta muros”, delimita seu espaço, tem especificidade.

C) A construção das personagens

Apoiando-nos em um pensamento de Antônio Candido (1998) sobre a novela literária, podemos dizer que há três elementos centrais em um desenvolvimento narrativo: o enredo, a personagem e as ideias. Segundo o autor, uma boa narrativa é aquela que consegue tratar de forma orgânica esses três elementos (CANDIDO, 1998, p.54).

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Sobre este assunto, Miller (2004, p.109) reflete que personagens são elementos importantes para determinados gêneros e podem, entre outras coisas, fazer o convite para que certos indivíduos explorem mundos intimidadores ou não familiares de maneira confortável e segura.

Futuramente, vou publicar a segunda parte com mais ideias sobre a teoria literária.

A discussão não para por aqui. =)


Referências bibliográficas

BACCEGA, Maria Aparecida. “Ressignificação e atualização das categorias de análise da “ficção impressa” como um dos caminhos de estudo da narrativa teleficcional”. Revista Comunicación, nº10, vol.1, año 2012, p. 1290-1308.

CANDIDO, Antônio. A personagem do romance. IN: CANDIDO, Antônio. et al.: A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 51-80.

MILLER, Carolyn Handler. Digital Storytelling: a creator’s guide to interactive enternainment. Burlington: Focal Press, 2004.

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