Relato de um recém morto-vivo

Não sei se já aconteceu com você, mas tive a real sensação de que meus dias estavam chegando ao fim.

A neurose começou dentro do ônibus. Estava indo de Hoi An para Hui E, onde esperaria alguns minutos para seguir direto para Hanoi, capital do Vietnam.

Nunca tive problemas para dormir. Diferente daquele dia. Tentava, tentava e nada. Nem com musiquinha de fundo ía. Nada.

Não demorou muito, e logo entendi o porquê da insônia. Como estava no primeiro assento do ônibus, tinha visão privilegiada para o motorista, o asiático que me levaria ao terrível fim.

Pior que nunca tinha sentido aquilo. Nem quando eu e um grande amigo estávamos dentro de um avião indo para Turquia, jurando que o aviso de que o pouso antes do tempo, era por causa ou de um ataque terrorista, no qual o avião estava tomado, ou por causa de uma tempestade, que nos levaria a fazer um pouso forçado nas águas frias do inverno europeu. Inclusive, pedimos até uma cerveja para comemorar aquele grande dia. Idiotas, só não tínhamos ajustado o relógio do celular de acordo com o horário local.

Mas então, o problema foi que aos poucos fui percebendo o quão mal aquele filho da puta dirigia. Ele ía de lá pra cá, metia a porra da mão na buzina de 10 em 10 segundos, corria, falava no celular, ameaçava dormir no volante. Inclusive, teve uma hora que vi ele até dando leves tapinhas no rosto, tentando se manter acordado. E claro, pra piorar ainda mais, de vez em quando, dava pequenos goles em algo com cor de whiskey. Fica aí a dúvida.

Foi tão bizarro, que, aos poucos, mais pessoas começaram a perceber. Um português atrás de mim, por exemplo. Fazia estalos com a boca a cada buzinada que aquele imbecil dava. Talvez, mais gente estivesse com medo. Era clara a imprudência daquele infeliz. Queria chamar a morte mais cedo pra todo mundo. Sentia que ela vinha depressa assim como um soldado vai correndo abraçar a família depois de tempos de guerra.

O que acalmou foi que meu ouvido apurado conseguiu captar que a próxima cidade estava chegando, faltavam apenas mais 40 kilômetros e que um pessoal desceria lá. Logo pensei, que, se o motorista não trocasse, desceria lá também e pediria para a mulher da agência de viagem trocar minha passagem para o próximo dia. Estava certo disso. Perderia um dia de viagem, mas ganharia mais alguns de vida.

Ele parou no centro da cidade e pediu para que todos descessem. Disse que sei lá o que mudaria. Não sabia se era ele ou o ônibus. Foi aí que fui até a agência e perguntei se o motorista seria o mesmo ou se o povo que continuaria viagem para Hanoi entraria em outro ônibus. Por minha sorte fui informado de que seria outro, mas teria que esperar uns trinta minutos. Até aí tudo bem. Se estivesse num jogo de aventura de PlayStation, naquele momento, tinha acabado de ganhar uma vida extra. Ufa!

Deu tempo de comer alguma coisa, fumar uns dois ou três cigarros. Sim, mãe. Dei uma turbinada no pulmão. Espero que entenda. E em menos de trinta minutos, lá estávamos novamente, voltando a atuar no “Pânico no ônibus vietnamita”.

E como você deve imaginar, a história não parava por ali. Com o ônibus quase lotado, tendo apenas mais três ou quatro assentos livres, pessoas do lado de fora brigavam por terem comprado o ticket e da impossibilidade de embarcar. Foi aí que a porra do sentimento ruim voltou de novo. Seria tipo daquelas tragédias que todo mundo morre, e que um ou outro se salva por não ter conseguido ir.

“Ah, não consegui chegar a tempo, porque o leite da mamadeira da minha filha caiu no chão e tive que limpar.”; “O moço do posto de gasolina quebrou a bomba de combustível dentro da moto do meu marido e perdemos a hora”.

Coisas do tipo que sempre fazem com que o vizinho ou o cunhado falem: “Tá vendo fulano, não era pra você ir. Deus te deu mais uma chance, ele te livrou!”

Simples, levantei a bunda do assento, peguei minha mala no bagageiro e fui perguntar pra mulher da agência de viagem se eu não podia trocar minha passagem para amanhã, pois não estava me sentindo bem, e etc. A resposta foi curta e direta: “Não! Ou você vai nesse, ou em um daqui dois dias, pagando muitos fucking dólares de diferença.” Ela mal sabia, mas se a coisa ruim acontecesse, se sentiria culpada ao lembrar do meu rosto quase que pedindo pelo amor de Deus para ir no dia seguinte. Ou não, né. Vai saber.

E aí, por mais que aquilo estivesse me deixando transtornado, o capricorniano dentro de mim falou mais alto e acabei ligando o foda-se mesmo e boa. Pra falar a verdade, pensei até em trocar com alguém que estava lá fora querendo por que querendo entrar na porra do ônibus da morte, mas concluí que seria muita filha da putagem da minha parte, e que se fosse pra dar merda, o escolhido era eu e pronto.

E lá se ía o burrão. Sentindo a merda se aproximando, e mesmo assim, indo de cabeça. Até música preferida eu coloquei pra tocar antes da internet cair. Se quiserem ouvir, chama ‘’Drain You” do Nirvana. Mandei mensagem para algumas pessoas, pensei em mandar alguma coisa para outras, mas logo me toquei de que não deveria fazer aquilo. Não precisava preocupar alguém sendo que talvez nada demais acontecesse.

O ônibus partiu, e claramente preocupado, comecei a ver fotos antigas, recordar momentos, tentando deixar claro, que havia levado uma vida boa, com grandes e memoráveis acontecimentos. Mas que ao mesmo tempo, se o fim de fato estivesse chegando, que não teria filhos. Caralho, eu não teria a “Manu”, e saber disso era bem chato. Que o futuro que espero não seria nada além de “achismos”. Que não poderia enterrar um tesouro quando velho em algum terreno próximo ao Supermercado Cobal, perto da casa dos meus pais em Guarulhos. Que não poderia se quer abraçar novamente pessoas que fazem falta no dia-a-dia. Nem a caralha de uma mensagem no whatsapp eu poderia mandar por causa da inexistência de internet.

É, se a merda viesse mesmo, seria das grandes. Iria dessa para uma melhor sem um puto, com um celular “vagabundinho” no bolso (sem internet, memória interna de 1 gb, câmera de incríveis 2.0 mpx, da marca AIS), com um maravilhoso Cup Noodles no estômago, na puta que o pariu virando a esquerda. Nem a caceta de uma cerveja na cabeça eu tinha para dar aquela facilitada no caminho, na parte do túnel que o pessoal diz que tem, sabe? E para melhorar, ainda morreria feio, com a cara inteira descascando por causa da última insolação. Vou além, hein… Daria um trampo do cacete para meus pais, pois sem seguro-viagem, querido, nada de caixãozinho free, não. Teriam que desembolsar uma puta nota para verem o filho da puta outra vez..

Cara, até rezar eu rezei. Pra quem não tem a cara de pau de se quer rezar um “Pai Nosso” antes de dormir, fechar os olhos e falar três desse e mais três “Ave Marias” não é pouca coisa, não. Pior que no desespero você sabe como é, né. Foram mais promessas que o número de títulos do Coringão. Sim, foi promessa pra caralho. Pra lotar o Maracanã em dia de Fla-Flu. Me fudi na real, né. Nem cláusula de quebra de contrato tive tempo de fazer.

O melhor é que escrevi isso faltando ainda mais doze horas de viagem. Ou seja, imaginem o cagaço que o menino de Guarulhos não ficou.

Bom que pelo menos estou aqui: vivão. Ruim que sentir isso foi uma das piores coisas que experimentei na vida. Mas até aí, fazer o que. Às vezes, o grande lance da questão era esse mesmo. Ver a morte se aproximar para conseguir enxergar o tesão que é estar vivo sob uma ótica diferente. Bom, não sei. O importante mesmo é que hoje é sexta-feira. Vivam!

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