Electric Dreams – o “Black Mirror da Amazon” – e a nova ficção científica

As empresas de VOD (Video-on-demand) já aprenderam que não basta ser apenas dono do canal de distribuição de conteúdo, principalmente quando o principal destes canais é, hoje, amplamente distribuído (o que chamamos de “internet”).

Dependendo do produtor de conteúdo, os serviços como Netflix e Amazon Prime Video encaixam-se em diferentes janelas de programação, o que significa o tempo de “espera” entre o lançamento de um filme/série no, até então, canal tradicional – tv ou cinema – e a disponibilização nestes serviços sob-demanda. Assim, os grandes estúdios tinham os serviços sob-demanda, que pagam menos pelos royalties dos filmes/séries, sob controle.

Reconhecendo esta dinâmica, e reticente em se tornar o lugar de filmes/séries antigos, a Netflix partiu pro ataque com a criação de conteúdos exclusivos, deixando de ser apenas uma plataforma para também atuar como publisher. Enquanto a HBO fez o caminho inverso (ao lançar o HBO GO) – mesma direção em que vai a Disney – e as empresas distribuidoras de TV a Cabo ainda não encontram seu caminho, a Amazon seguiu a Netflix foi outra empresa que passou a atuar não somente como distribuidor de conteúdo de outros, mas ambiente onde histórias exclusivas podem ser consumidas.

VOD

Em outubro do ano passado, a empresa de Jeff Bezos lançou no Brasil seu serviço de VOD, o Amazon Prime Video onde, além de valores promocionais para pegar um pouco do ‘share of pocket’ do consumidor de filmes/séries, seguiu a fórmula do concorrente na produção de conteúdos exclusivos que agem como ‘âncoras’ para obtenção e retenção de assinantes.

A Netflix tem mais de 200 conteúdos exclusivos entre filmes e séries, incluindo os aclamados Stranger Things, 13 Reasons Why, House of Cards e Black Mirror. A HBO ordenha sua vaca leiteira Game of Thrones. E a Amazon? Como uma empresa que não vem do universo do entretenimento/mídia está lidando com a múltipla personalidade: Producer – Publisher – Distributor ?

Hoje, a Amazon tem por volta de 50 conteúdos exclusivos em sua plataforma de VOD e outros tanto em produção. Em uma análise pessoal, três deles se destacam consideravelmente em termos de construção narrativa e envolvimento com o espectador, facilmente batendo de frente com qualquer outra produção com milhões de fãs no mundo:

(1) Mr. Robot, a história de um hacker com algumas questões psicológicas em aberto (#no_spoiler) lutando contra uma mega corporação;

(2) The Man in the High Castle, a representação da vida nos EUA em um mundo onde os nazistas ganharam a 2a. Guerra Mundial e;

(3) Electric Dreams, baseado em uma antologia de ficção científica, com episódios independentes, escrita por Philip K. Dick.

A tecnologia como ferramenta

Black Mirror desconstruiu o entendimento sobre o termo ficção científica ao tirar a tecnologia, por si, do centro da narrativa e, ao invés disso, destacar os impactos psicológicos e sociais de seu uso. No universo narrativo de Black Mirror a tecnologia deixa de ser o centro das atenções; quando disfórica (pendendo para resultados negativos) nos sentimos incomodados durante os 5 minutos iniciais, enquanto nos é apresentada. Porém, a partir deste momento, passamos a aceita-la como algo ‘trivial’ dentro da história e nos envolvemos nos dramas psicossociais dos personagens, em histórias independentes onde o arco evolutivo do personagem é tão ou mais importante que o arco da história em si.

BM01

Philip K. Dick’s Electric Dreams segue esta mesma fórmula. Em sua primeira temporada, recém disponível na plataforma da Amazon, traz 10 episódios cujo envolvimento se dá na empatia para com o drama dos personagens resultantes do uso da tecnologia e não pelo endeusamento de dispositivos, artefatos e ambiente.

A ficção científica deixa de focar-se na engenharia futurista e passa a considerar os efeitos psicológicos e sociais de seu uso. Nos modelos de conflito narrativo de Grant Snider, deixamos de olhar o Homem x Tecnologia para encararmos o Homem x Self e o Homem x Realidade (por meio da tecnologia).

O primeiro episódio (Real Life), por exemplo, joga com a incapacidade de distinguir entre o real e o virtual (again, #no_spoiler, ok, talvez um spoilerzinho bem pequeno) quando uma policial de algum momento futuro e um empresário do que hoje entendemos como presente alternam-se através de equipamentos de indução de pensamentos, não ficando claro qual das duas vidas é real e qual é a criada artificialmente como um escape imersivo.

Autofac, o segundo episódio, tem início em um planeta destruído após 20 anos de um conflito entre Estados Unidos e Rússia. Uma grande fábrica controlada por inteligência artificial mantém seu ritmo de produção para suprir uma sociedade inexistente, comprometendo os recursos do planeta.

A partir daí, os demais episódios cobrem temas como abduções da psique, humanos sintéticos, turismo espacial, entre outras liberdades criativas.

Talvez pela capacidade de registro da evolução tecnológica, aliada à ampla distribuição de conteúdos e ideias, passamos a ter uma relação menos assustadora com a tecnologia possível no futuro. Não que ela não cause incômodo; mas este espanto se dá mais pelo impacto no comportamento e relações humanas do que pela surpresa sobre sua capacidade de desenvolvimento (engenharia) de dispositivos – abordagem ainda presente na ficção científica Westworld, da HBO, por exemplo.

Electric Dreams é mais um exemplo que reforça um papel cada vez maior das Ciências Sociais e Sociais Aplicadas na cientificação da ficção. A tecnologia e o comportamento humano em uma relação simbiótica que afeta a natureza de ambos.

Isso é muito Black Mirror!

 

Receba nossos posts GRÁTIS!
Mostrar comentários (33)

This website uses cookies to improve your experience. We'll assume you're ok with this, but you can opt-out if you wish. Accept Read More