Por que seu selfie não se parece com você

[su_quote cite=”Guilherme de Brito”]Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor[/su_quote]

Frida Kahlo pode ensinar duas ou três coisas sobre selfies.

Com vinte telas em exposição no Brasil, ela já deve ter dado as caras no feed do seu Instagram. Digo as caras porque provavelmente apareceram ao menos dois rostos luzindo no seu celular. O da própria mexicana (ao fundo, em um dos seis autorretratos da mostra) e também o daquele seu amigo (protagonizando um sorridente primeiro plano).

Tão próximos, tão distantes: autorretrato e selfie são gêneros incrivelmente diferentes. Apenas se parecem o suficiente para provocar confusão. Olha mais de perto a imagem.

Lá no canto está, digamos, o “Autorretrato com Trança”. Basta saber que apresenta a Frida sendo Frida com a intensidade de sempre. Monocelha espessa, bigodinho de moleque de 13 anos, penteado alegórico e vestida com uma roupa que até seria exótica se ao menos fosse roupa – mas são folhas de uma planta fazendo as vezes de camisa.

O pescoço frágil carrega um colar indígena pesado, que na certa tem um significado oculto que meu conhecimento de antropologia pré-colombiana não permite decifrar. Os lábios vermelhos estão levemente contraídos, deixando a
boca séria – ninguém está acusando a Frida de fazer duck face. O olhar firme encara o espectador.

Nesse caso, encara a nuca do espectador.

Sim, estou falando do seu amigo. Mesmo sem conhecer a figura, aposto que ele está de costas para a pintura e de olho na câmera frontal do smartphone. Ombro e o braço se intrometem na foto, que exibe seu melhor perfil e a boca escancarada cheia de dentes. Esse foi o décimo sétimo clique, quando enfim os bits se alinharam da maneira mais favorável à autoestima dele. Agora é só postar.

Ele não está sozinho nisso.

Fiz agora mesmo uma busca no Instagram e encontrei 214.704.443 publicações marcadas como #selfie. Quase todo mundo seguindo o adágio de Kim Kardashian, implacável paparazzo de si mesma: queixo baixo e celular alto.

A diferença entre Frida e os 214.704.443 de selfie made men?

Frida tinha coragem de olhar para si mesma. Seus autorretratos são ao mesmo tempo brutais e irresistíveis porque ela sempre aparece inteira neles, pro bem e pro mal. A pólio que comprometeu sua perna direita, o acidente que fraturou sua espinha e pelve, as dezenas de cirurgias, os abortos, a dor e a delícia dos relacionamentos amorosos, a sexualidade livre, a vontade forte no corpo fraco, desejo e frustração, luz e sombra – está tudo nas telas.

Enquanto isso, os 214.704.443 dificilmente aparecem de verdade nos selfies. Ali é apenas uma mistura de euforia programada com imagem polida em aplicativos de edição. Aquela pessoa com tantas curtidas, francamente, não existe.

Somos antinarcisos: detestamos nossa imagem. Só gostamos da gente com filtro.
Publicamos na esperança de que os outros gostem da gente, ainda que com filtro.
E sonhamos com a vida daquele cara do selfie que parece tão familiar.

[su_divider top=”no” size=”1″]

Fernando Luna deu sua contribuição para os 214.704.443 selfies. É jornalista, sócio e diretor editorial da Trip Editora, onde cria e desenvolve conteúdo para tevê, eventos, digital e revistas.

[su_divider top=”no” size=”1″]

Ilustração: Eduardo Medeiros

Receba nossos posts GRÁTIS!
Deixe um comentário

This website uses cookies to improve your experience. We'll assume you're ok with this, but you can opt-out if you wish. Accept Read More