A FORD ESTÁ MORTA. VIDA LONGA À FORD.

Por Diogo Pereira

1908: É lançado o Ford T. O famoso modelo inaugura uma revolução no transporte mundial, dando início a um mundo dominado pelos automóveis.

2008: A Ford anuncia a demissão de 25.000 a 30.000 funcionários e o fechamento de 14 fábricas, na maior crise de sua história.

Apesar de eventuais pequenos crescimentos, há uma crise contínua ocorrendo não só na Ford como na indústria automobilística. E apesar da crise econômica mundial iniciada em 2008, os acontecimentos apontam também para uma grande mudança em curso para além dela. E não só para as montadoras.

Claramente o poder aquisitivo e o valor da moeda influenciam na compra de um automóvel, e isso parece a explicação óbvia para os pátios lotados das montadoras. Mas isso só é determinante partindo do pressuposto de que as pessoas querem comprar um carro.

A parte oculta dessa crise é que a sociedade mudou, e o tão sonhado carro próprio não está mais nos planos de boa parte da população.

Não que tenhamos perdido o prazer de dirigir, pois há críticas nesse quesito aos carros autônomos que começam a surgir. Nem abrimos mão da comodidade e conforto de um automóvel. Mas uma profunda mudança cultural está em curso e nos fez perceber que o prazer de dirigir ou simplesmente andar de carro não é uma consequência do prazer de ter um carro.

A cultura do compartilhamento não é mais um termo estranho a boa parte de nós, seja para o compartilhamento de carros ou de outros bens como roupas e casas. Um mundo não só em crise como também com graves problemas ambientais despertou a consciência das pessoas para o fato de que para usufruir de um objeto não precisamos possuí-lo. Uma redução no consumo é necessária e fará bem a todos, individual e coletivamente.

Obviamente esse não é um conceito novo. É uma versão repaginada do bom e velho aluguel. Alugar, a grosso modo, nada mais é do que compartilhar algo mediante pagamento. A diferença é que só optávamos por esse modelo quando a compra era algo desvantajoso, desnecessário ou até mesmo impossível. Se vamos viajar para outro país por 10 dias, não faz sentido comprar uma casa. Aluga-se um quarto de hotel. O que foi acrescentado são modelos em que o dinheiro não é essencial para o compartilhamento, podendo-se usar o tempo ou outro bem como moeda de troca, ou até mesmo criar somente uma relação de solidariedade.

Mas o que há de novo e não pode ser explicado somente como uma economia diante de uma perspectiva de colapso, ou uma preocupação diante da poluição atmosférica causada pelos carros ou dos contaminação de rios por fábricas têxteis, é um novo jeito de pensar. Além da parte negativa que as crises econômica e ambiental representam, há uma parte positiva representada pelo surgimento da internet e o começo da transição de um mundo analógico para outro misto, ainda analógico mas cada vez mais digital. E um dos pilares desse novo mundo é a dissociação entre um objeto e sua função.

Pense na história da música digital.

A crise pela qual as gravadoras passaram durou anos e teve muitos capítulos, do Napster ao iTunes, mas a raiz dela é única: o acesso a arquivos digitais de som. Se antes a música estava presa a um objeto físico, seja o vinil, o K7 ou o CD, agora ela é livre. Para ouvir música não é necessário possuir música. Não à toa os serviços de streaming proliferam rapidamente.

Pense nas fitas VHS das locadoras de vídeo ou nos DVDs e Blurays em relação ao Netflix e a mesma lógica se aplica.

Isso ocorre porque o mundo digital é, em grande parte, imaterial. Um único objeto, o computador, pode exercer diferentes funções, tirando o foco do objeto para a ação em si. E justamente por isso qualquer coisa hoje pode ser um computador, seja sua TV ou sua geladeira. O que importa não é o objeto em si, e sim as tarefas que ele realiza.

Olhe para o seu celular e pense em quantos objetos diferentes eram necessários para executar todas as funções dele há alguns anos atrás?

A origem desse processo é a seguinte: sempre estivemos habituados a criar ou usufruir de objetos dando uma função a ele, que por sua vez criava um significado.

Pegamos um pedaço de grafite, demos a ele a função da escrita e criamos o lápis. Do significante, o grafite, ao significado, o lápis, passando pela sua função.

Em uma pequena equação: objeto > função > significado.

A grande mudança cultural é que deslocamos o nosso foco do objeto para a função. Não pensamos mais em criar novos objetos, e sim novas funções. Ou funcionalidades, pra usar um termo mais usual nos programas e aparelhos que usamos frequentemente.

E ao invés de criarmos um objeto e definirmos suas funcionalidades, pensamos em funcionalidades e definimos os seus significados. Daí resultam novos objetos.

Esse raciocínio é a base da tão falada internet das coisas.

Sempre usamos cadernos ou agendas para lembrar dos compromissos diários. São bastante úteis, mas tem a deficiência de atrelar nossas necessidades a um objeto específico. Se tenho que lembrar de comprar leite e suco, porque não ter uma geladeira como agenda ao invés de um bloco de papel? A função é lembrar de algo, o significado varia conforme a necessidade, e o resultado é um novo objeto: uma geladeira inteligente.

E é o raciocínio da internet das coisas que inspira as startups que tanto admiramos. Netflix, Google, Uber, Amazon, Pinterest, AirBnB. Todas tem em comum o foco na função, e não no objeto.

O que nos leva de volta a Ford, uma empresa que ainda fabrica carros.

Os carros não vão desaparecer. Mas passarão a ser enxergados não mais como objetos, e sim como funções. O importante é se deslocar de um lugar a outro.

E por mais que a partir desse raciocínio possamos pressupor que temos um horizonte bem definido à frente, é preciso entender que é prematuro fazer apostas altas. No caso da indústria automobilística, é fácil apostar que o futuro se parece com o Uber. Mas só parece. Veja esse vídeo da Nissan:

Intelligent Parking Chair

Uma ação de propaganda para divulgar um sistema de estacionamento inteligente pode esconder o embrião de um novo pensamento de negócio, que mesmo hoje é uma possibilidade que pode não ser levada a sério nem por você nem pelos executivos da empresa.

Mesmo assim, faça o teste. Desloque o foco do objeto pra função ao resolver um problema. Seja você publicitário, marceneiro ou chef, há um novo caminho a ser explorado.

Seja como a Ford de 1908: ao invés de melhorar o cavalo, se concentre no que ele faz.

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