Liniker e Os Caramelows: generosidade e experimentação na Música Preta Brasileira

Se você passou o último ano vivendo embaixo de uma pedra, deixa eu te contar: Liniker e Os Caramelows são uma banda de Araraquara que lançou em 2015 seu EP de estréia, Cru, e vêm fazendo uma MPB – “Música Preta Brasileira”, como o baixista Rafael Barone definiu – de altíssima qualidade.

A banda está em turnê pelo lançamento do álbum Remonta, que conta com as três faixas do EP Cru em novos arranjos, além de dez faixas inéditas com participações especiais.

Tive a oportunidade de conversar com Liniker e Barone na tarde antes do show que aconteceria em Belém. Falamos sobre ser artista independente no Brasil hoje, a arte de pedir ajuda do público, influências e, claro, o processo criativo. Generosidade e experimentação parecem ser as grandes chaves da criação do trabalho da banda.

Foto: Gabriel Quintão
Fotos: Gabriel Quintão

 

Todo mundo “meio que já se conhecia”, segundo Liniker. Todos eles são de Araraquara, menos Renata Éssis, backing vocal. Barone, que trabalhou com produção cultural durante anos, montou um estúdio de som com uma galera. Esse espaço acabou atraindo vários jovens talentos da cidade, inclusive Ekena Monteiro, que foi backing vocal em Cru, e Guilherme Garboso, que foi o baterista do EP. Segundo Barone, foi tudo muito rápido: em dezembro de 2014, Liniker e Garboso se falaram, e em janeiro eles já estavam tocando juntos. Simples assim.

Barone: “Louise du Brésil” saiu depois de poucos ensaios. Foi tudo fruto de uma cena e dos encontros. E aí, como grupo, a gente assumiu a responsabilidade de entender essa… é difícil rotular… essa Música Preta Brasileira, a nossa MPB. [risos]

Sobre a experimentação, Barone continua: “A gente vem neste estudo muito forte, de entender essa linguagem [da ‘música preta’] com mais profundidade e segurar essa responsa, e ao mesmo tempo se deixar errar, se permitir testar muito. O próprio EP, Cru, foi um grande teste, de tentar e ver o que funcionou.”

– Como vocês vêem a evolução da música autoral no Brasil ao longo dos últimos anos?

Liniker: É muito bonito ver o quanto as pessoas têm colocado na rua o que elas têm vontade, e o quanto esse trabalho tem aparecido. Eu lembro que o primeiro disco independente que eu ouvi, aos 16 anos, foi Efêmera, da Tulipa [Ruiz]. Eu percebia que tinha liberdade no trabalho dela, e aquilo me motivava muito a querer mesmo escrever os meus sons. Ver as pessoas desaguando isso como quem precisa vomitar algo, sem precisar de uma gravadora e podendo fazer isso através de plataformas como financiamento coletivo… é um movimento de quem quer fazer, e estão fazendo lindamente. Eu fico muito orgulhosa da gente estar podendo fazer nosso trabalho desse jeito, com propriedade, sem ninguém manipulando ou transformando isso em algo que não seria nosso. Poder construir esse trampo com o nosso público é maravilhoso.

– Sei que vocês fizeram um projeto de crowdfunding para o Remonta, e que o resultado surpreendeu vocês positivamente. Lembrei do livro da Amanda Palmer, “The Art of Asking”, em que ela conta como conseguiu fazer um trabalho criativo confiando apenas na ajuda dos fãs. Como tem sido essa relação com as pessoas que ajudaram?

Liniker: Logo que a gente pensou na ideia do crowdfunding, a Amanda Palmer já chegou pra gente naquele video maravilhoso explicando o processo dela. E é muito bonito ver a propriedade que ela tem para falar daquilo, e o quanto pedir não é errado a partir do momento que você tá construindo junto, sabe? Essa relação de troca com o público acontece desde o EP, de ter essa galera que tá junto, vai ao show, tá com a gente no dia a dia… foi uma coisa que se criou, de ser uma banda que tem o público como um grande parceiro. É muito legal.

– Você acha que a internet e as novas ferramentas têm um papel nesse desenvolvimento da música independente?

Liniker: Eu acho que sim mas eu acho que não é só isso. Acho que as pessoas estão com muita vontade de botar coisas pra fora – por tudo que a gente vem passando, que não dá mais pra engolir seco -, então todo mundo está procurado uma forma de transbordar isso tudo. A gente não é mais obrigado a nada, então vamos colocar tudo isso pra fora!

– E me conta, como é o processo criativo coletivo, ainda mais em uma banda grande? Como foi a composição de Remonta?

Liniker: Quando eu comecei a escrever, era uma coisa muito individual, eu comigo e o violão, com as minhas reflexões. E os meninos mostraram uma generosidade e um acolhimento muito forte, comigo e com o meu material – de entender por que eu havia escrito cada música, de trazer pra si e cada um botar um pouco das referências e da sua história através dos instrumentos… e aí foi virando uma coisa nossa, sabe? […] E esse é um material que não são só cartas de amor e pés na bunda. É toda uma questão política que eu hoje trago no meu corpo – de me identificar hoje como uma mulher trans, de ser negra e um histórico do qual o pessoal também foi se apropriando e a gente foi entendendo como ia caminhando juntos.

Barone: Também tem o jeito que a própria música evolui. A Liniker, quando escreveu “Prendedor de varal”, queria que fosse um “sambinha no domingo no churrasco da família”. Então a gente pensou nela como voz, violão e uma caixinha de fósforo – e assim tocamos durante um tempão. Até que um dia a gente estava passando o som e brincando em cima de um funk que estava tocando, e Liniker subiu no palco e começou a cantar “Prendedor de Varal” numa versão que não tinha nada a ver com a original. E aí a música mudou. A gente vai criando assim, se permitindo muito.

– E quando vocês estão em turnê? Como essa convivência intensa interfere no processo?

Liniker: Olha, como a gente já está neste processo muito intenso, a gente acaba trocando muita referência e isso vai dando a bagagem, vamos incorporando isso na música aos pouquinhos. Vamos respeitando o momento também. Por exemplo: eu não tenho escrito, e tenho entendido que esse é o movimento. E tranquilo também, não tem que ter essa pressa de já pensar num outro disco. É tudo muito novo, a gente tá sentindo como o disco tá chegando. Foi um processo longo, um disco que levou cinco anos para ser composto. Então a gente vai se interferindo, mas com calma. Com pressão ninguém aqui funciona, então vamos no nosso tempo e sentindo como isso vai reverberando em cada coisa, sabe?

– Sei. E esse processo longo gerou algum tipo de apego à obra? Como vocês se sentem em relação ao “filho”?

Barone: Desde o começo a gente já tinha muita clareza que a gente não queria ficar refém de arranjo, nem de rótulo, ou de ritmo. Eu nem lembro da gente conversar profundamente sobre isso, porque acho que já estava claro para todo mundo que os arranjos do Remonta não seriam os do Cru. A gente já sabia que seria diferente, a gente só não sabia para onde ia. Eu gosto muito do arranjo de “Zero” do Cru, mas ele tem uma energia que não cabia exatamente na proposta do Remonta. E aí veio uma influência muito forte do Lee Fields para a gente repensar esse arranjo.

– Como é a dinâmica de vocês com o Marcio Arantes, produtor de Remonta?

Barone: A gente já era muito fã do trabalho dele. Ele foi produtor do Efêmera, que era uma indicação muito forte de onde a gente queria chegar. Ele também é um baita baixista, aprendi demais dele, a usar palheta de verdade… [risos] E ele provoca a gente para tentar coisas ou até enxergar coisas que a gente não queria ver.

– E como vocês escolheram as participações especiais do disco?

Barone: Algumas participações estavam mais óbvias porque pessoas que já estavam convivendo com a gente, como As Bahias e a Cozinha Mineira e o Danilo Moura, Tassia Reis – que escreveu música com a Liniker -, o Aeromoças e Tenistas Russas, que já cruzou meu caminho várias vezes… e outras menos próximas e que a gente tinha uma admiração grande, como a própria Tulipa e o Thiago França.

– Eu sei que Liniker vem de uma família de músicos, e que no começo não foi fácil se mostrar com a sua música. O que vocês aprenderam com e sobre a vulnerabilidade da criação?

Liniker: Eu pensava que tinha um peso muito forte, do tipo “como é que eu, no ápice dos meus dezesseis anos, vou apresentar minhas músicas para a minha família, que já tem uma formação musical?”. E eu acho que isso é um lance construído e que a gente carrega sem precisar, sabe? Às vezes por medo, por achar que não tem força, ou que é uma coisa banal… e não é. Acho que quando a gente acredita, não tem como ser vulnerável. Quando a gente acredita de verdade e bota o que sente ali, não é uma coisa qualquer. Dá pra ser tranquilo. Tem uma frase que a Tassia [Reis] me fala que eu quero levar para o resto da vida: “A gente precisa respirar enquanto a gente vive”. Enquanto a gente estiver respirando o que a gente acredita, vai dar tudo certo.

 

 

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