Conversas de Coffee Shop

– Cara, deixa eu te falar uma coisa. Percebeu que só a nossa mesa tá iluminada?

– Nossa, verdade. Mas e daí?

– Sei lá, nada demais, coisa da minha cabeça.

– Ê, caralho! Agora fala, quero saber!

– Tipo, não parece que isso é um filme?

– Filme? Você tá viajando! Como se a gente estivesse atuando e eles assistindo? Você tá muito louco, fala mais…

– É, porra! Você pegou! Olha bem pra eles. Todos quietos, conversando numa boa, fumando seus baseados. Parece tão rotineiro. E tipo, bem ao mesmo tempo que a gente tá aqui, falando uma monte de merda, rindo pra cacete. Parece que eles vieram aqui só pra ver a gente, entende?

– Cara, você acha mesmo que a gente tá num filme?

– Não, tipo… Eu sei que não é verdade, mas é legal enxergar dessa forma, né? Tipo, se a gente tivesse certeza que tem gente assistindo a nossa vida como fosse um filme, concorda que seria diferente?

– Legal é. O foda é ter na cabeça que se não tiver do caralho, vão querer trocar de canal e ainda sairão por aí falando um monte de merda.

– Mas aí que tá o negócio. Essa certeza junto com esse medo de não saber fazer que nos motivaria a sempre querer surpreender.

– Interessante esse pensamento. Mas me fala uma coisa: se isso estivesse acontecendo agora, você acha que o cara tá gostando?

– Ah, vamos pensar… Onze da noite, Amsterdã, coffee shop, falando essa merda gigante. É, talvez seja a parte do filme que a galera dê risada e torça pra gente fazer alguma coisa bem burra. Tipo, a gente já tá fumado, não tem muita grana e amanhã temos um dia inteiro pra fazer uma porrada de coisas. O que eles menos querem é ver a gente indo pro hotel dormir e descansar para amanhã…

– É, se fosse eu, ficaria bem brochado com essa cena. Desligaria a TV na hora.

– Então, é sobre isso. Olha bem pra mesa. Tem mais maconha. Eles querem muito que a gente fume até acabar com tudo.

– Você tem dúvida? Olha esse som, é um sinal.

– Caralho, é isso. Mas tipo, isso é o que eles querem ver. Devem tá torcendo pra gente ficar muito chapado e sair por aí perdidos na cidade.

– Sim, é meio previsivel, né? Mas então, como a gente surpreende?

– Acho que a gente não precisa pensar muito. Olha a hora: os ônibus vão parar de funcionar em 30 minutos. Não é querendo cortar a brisa, mas a gente precisa ir antes que essa viagem se torne numa grande merda real.

– Caralho, como você é cuzão. Você que veio com esse papo e agora que eu comecei a gostar, você vem com essas? Se a gente fizer isso, ele vai desligar a TV. Puta filme merda.

– Você prefere correr esse risco ou ficar por aí perdido sem conseguir ir pra casa? Nem dinheiro a gente tem mais. Era só uma viagem, ninguém tá vendo não.

– Você tá certo. Pega o mapa aí pra gente ver onde pega o ônibus.

– Mapa? Ficou com você, não ficou?

– Claro que não, te dei antes de sair do hotel.

– Não tá comigo. Nem brinca.

– Caralho, sério? A gente se fudeu, então.

– E agora?

– Já sei, vamos entrar em um lugar, pegar o wifi e colocar o endereço do hotel.

– Você tem anotado isso?

– Não! Só tinha o mapa.

– Mas nem a porra do nome do hotel você lembra?

– Não, porra. Que merda. Como a gente não pensou nisso?

– A gente vai ter que ir a pé, tentando lembrar o caminho.

– Você tá louco? Se de ônibus a gente demorou meia hora pra vir, imagine a pé sem saber o caminho? As ruas são todas iguais. Fudeu.

– Ok, ok… Chega disso. O mapa tá aqui, vou olhar como faz pra irmos embora.

– Que? Por que você não vai se fuder? Olha a hora, filha da puta. Se a gente não chegar em 15 minutos no ponto, a gente vai ter que dormir na rua.

– Relaxa, é logo ali do outro lado da rua. Tá vendo o ponto lá?

– Por que você fez isso?

– Ué, o filme não tinha que ficar mais legal? Só dei uma ajuda.

– Cara, o ônibus é aquele, não é. Vamo aí? Tem moeda pra emprestar?

– Tenho, mas não tô afim de pagar. É catraca livre, esqueceu?

– Mas e se o fiscal entrar e pedir o comprovante?

– Foda-se, olha a hora, não tem erro.

– Ah, de boa. Bom que sobra grana pra gastar mais amanhã. Mas aê, se essa brisa do filme ainda estiver acontecendo, a gente não tá deixando a desejar, hein. Pelo contrário, acho que deve tá bom pra caralho.

– Porra, olha o fiscal ali no fundo sentado. E agora?

– Ele não vai vir aqui, olha a cara dele de cansado. Só quer ir pra casa, comer um puta prato de comida, cobrir a filha pequena e deitar do lado da esposa. Relaxa.

– Será? Você viu o valor da multa?

– Vi, nem tenho essa grana aqui. Vamos fazer o seguinte: se a gente perceber que ele quer levantar, a gente dá o sinal e desce no primeiro ponto.

– Mas e se não der tempo?

– A gente simplesmente finge que não sabe o que está acontecendo.

– Sei lá, tô meio preocupado, mas pensando bem, seria bem mais legal se ele começasse a checar os tickets, a gente tentasse sair e não desse tempo. Imagine a situação…

– Verdade… Imagine a gente contando daqui 10 anos. Engraçado, né?

– Mas isso vai acontecer, só não vamos tomar uma multa de sei lá quantos euros.

– Espero que não, mesmo. Mas é meio bizarro, não acha? É difícil viver assim tendo que fazer ser mais do caralho. A gente poderia se fuder.

– É, eu sei. E acho que é por isso mesmo que foi do caralho.

– Por mais que seja só brisa, essa analogia é legal. Querendo ou não, se a gente pensar desse jeito, nossa vida tende a ser mais interessante. Acho que o negócio é se colocar no lado de quem está assistindo.

– Se a gente achar que tá chato, hora de mudar o jogo. Vai ver a coisa não começa a ficar mais divertida. E tipo, pensa com você: a maioria das histórias que você sempre conta são as mais bizarras e as que quase deram muita merda. Enfim, é aqui que a gente desce.

– Ah, antes da gente entrar, queria te dar os parabéns. Você mandou bem nisso.

– Como assim?

– Aquele negócio do mapa. Eu já tinha visto no seu bolso.

– Serio? Que filho da puta, sabia que eu tava mentindo e não falou nada?

– Sim… E ah, eu também tinha um outro mapa comigo…

– Caralho, você levou a serio esse negócio. De verdade, parecia muito que você tava puto. Meio com medo, sei lá.

– Que graça teria se eu tivesse acabado com tudo? O que eles pensariam?

– Que nem todo filme precisa ser do caralho?

– Não, para… Não seja como eles.

O que você quer dizer com isso?

Que mesas iluminadas aparecem para todo mundo, mas nem todo mundo sabe como mantê-las acesas.

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