A curiosidade matou o gato

A fonte encontrada para explicar o ditado popular que dá título a esse texto não é lá muito confiável. Mas, de certa forma, criativa

Ser curioso é um problema. Pode até matar. O problema é que, de certa forma, isso é verdade. A fonte encontrada para explicar o ditado popular que dá título a esse texto não é lá muito confiável. Mas, de certa forma, criativa. A sua antiga versão dizia que “a preocupação” mataria o felino. No entanto, criou-se uma resposta para isso, dizendo que, em compensação, “a satisfação o ressuscitaria”. Interessante olhar por esse ângulo. Talvez o ditado tenha sido criado por pais ou patrões zelosos demais com seus filhos ou com o seu patrimônio, ou talvez para proteger a pureza da resposta das crianças. Daí, melhor meter medo e logo anular o voraz instinto para a descoberta que a molecada naturalmente tem. Afinal, ninguém quer se machucar ou ter prejuízos.

Matando a curiosidade logo no berço, garantimos paz e tranquilidade. O que esquecemos, claro que isso requer imaginação, é que o gato tem sete vidas. Penso, logo insisto. Se ele insistir em dar vazão à sua curiosidade, muita coisa pode acontecer. O “morrer” aqui não precisa ser literal, mesmo que seja uma possibilidade, mas o curioso tende a remover camadas de sua percepção. Inevitavelmente vai matar velhas ideias. Morre sua versão antiga para ressurgir no terceiro ou quarto dia de tentativas. A descoberta pode ser um milagre. Afinal, como dizia Eça de Queirós, curiosidade é o instinto que leva alguns a olhar pelo buraco da fechadura, “e outros a descobrir a América”.

A leitura da biografia de da Vinci, brilhantemente escrita por Walter Isaacson, tem sido um prazer incomum. Matar a ideia do gênio divino, e ressuscitar o conceito de “curioso inveterado” foi uma experiência libertadora. E conhecereis a verdade… “O que fez de Leonardo [da Vinci] um gênio”, diz Walter, “e o diferenciou do restante das pessoas que são apenas extraordinariamente inteligentes foi a criatividade, a habilidade de aplicar a imaginação ao intelecto. A facilidade que da Vinci tinha para combinar observação com fantasia permitiu que ele, assim como outros gênios criativos, “criasse saltos inesperados relacionando coisas existentes com outras jamais vistas”, afirma. Adoro quando Arthur Schopenhauer diz que talento é acertar um alvo que ninguém acerta, e que genialidade é acertar um alvo que ninguém vê. Como isso seria possível sem uma curiosidade desvairada, repleta de “riscos”?

O olhar do curioso é um farol. Quanto mais apagado menos chances de atrair algum navio perdido no oceano, à deriva, repleto de tesouros desconhecidos. “O maior talento de Leonardo era a habilidade aguçada para observar o mundo”, diz Isaacson. Para ele, era esse dom que alimentava sua curiosidade. “Não era uma espécie de dom sobrenatural, mas um produto de seus esforços”, argumenta. A “periculosidade” gerada pelo curioso reflete nos dilemas que acaba vivendo diariamente. Precisamos seguir regras. Normais sociais. Qualquer pequeno desvio que seja cria problemas. Cada “não” muda a rota, e cada “sim”, do mesmo jeito. Se seus olhos são seduzidos para algo que não está na cartilha ou no método, a gente vira um alvo.

O olhar pode mudar tudo; mas não se engane, o segredo não está na direção dos seus olhos. O tímido Henry David Thoreau nos ajuda a entender melhor isso. Para ele não é o que olhamos que importa, “é o que vemos”, afirma. O curioso é atraído por uma infinidade de versões possíveis e impossíveis da realidade. Quando todos veem uma pedra o Joãozinho vê uma munição. Quando todos veem apenas números Einstein está viajando no tempo, à velocidade da luz. Como ‘pensam diferente’, pessoas extremamente criativas são, às vezes, vistas como desajustadas. No anúncio que Steve Jobs ajudou a escrever a gente lia: “Enquanto alguns os veem como loucos, nós vemos gênios. Porque as pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo são as que, de fato, mudam”. Incrível. Curioso. Arriscado. Genial.

Não há nada de genial nisso, mas gosto dessa história. Quando tinha uns 10 anos, me arrisquei por regiões remotas da cidade em que vivia, para ver se conseguiria vender meus picolés mais rápido que os outros. No centro da cidade estava todo mundo, então seria mais fácil, por isso todos os concorrentes que vendiam o meu produto também estavam lá. Daí parti para os rincões da periferia de Caratinga. Acabei descobrindo que as pessoas que ficavam em casa, nos bairros distantes do centro, também gostavam de picolés. Vendi muito mais, e voltava cedo para casa, sobrando tempo para ver a Sessão da Tarde, e algumas rodadas de pique-esconde, antes que a minha mãe gritasse o meu nome para eu “recolher aos aposentos”. Desde cedo aprendi que a experimentação tem seus riscos, mas também suas recompensas. A curiosidade tinha matado uma versão antiga de mim.

Para o bem ou para o mal, a criatividade humana sempre foi a amante insaciável do espírito inovador. Quem sucumbe aos seus encantos são mentes “pervertidas”, que não aceitam regras, que se envolvem em tramas desconhecidas, em busca de aventuras que dão arrepios, que estimulam nossos sentidos, que colocam nossas vidas em risco, que botam à prova nossas ideias de normalidade. A criatividade nossa de cada dia não está na estratosfera, vagando como nuvem, à disposição de seres celestiais. É um ato vulgar, às vezes. Despretensioso, mas divertido. Rod Judkins diz que a criatividade não tem a ver com criar uma pintura, um romance ou uma casa, “mas com criar a si próprio, criar um futuro melhor e aproveitar as oportunidades que você está perdendo”. A vida sussurra em nossos ouvidos: a curiosidade pode matar você de muitas formas. Mas, se você vai morrer de qualquer jeito, que seja com estilo!

 

Bibliografia

Walter Isaacson. Leonardo da Vinci, 2017.

Rod Judkins, A arte da criatividade, 2015.

As outras citações vieram da Internet [ sim, eu revelei o meu “pulo do gato” ].

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