Hoje, só se fala em Childish Gabino e This is America. O criador da “confusão”, Donald Glover, está feliz, ao que tudo indica. O barulho que desejava criar é ensurdecedor. Todos querem explicar a sua obra. Todos querem descobrir os segredos ocultos em sua música. Todos querem ser os primeiros a atravessar o imenso oceano de sua imaginação e descobrir até onde é possível navegar. Quem é Gambino? Quem é Glover? Quem é a América? Quem somos nós? Quem é você? Quem sou eu?
De tempos em tempos surge um encrenqueiro. Vez ou outra, alguém bota a cristaleira abaixo. De repente algo surge no horizonte e não se parece com nada que conhecemos. Um tsunami de ideias somado a uma outra imensa onda de desespero sempre desenha a paisagem nessas horas. O incômodo é humano. Serve para despertar as pessoas, fazê-las mudar de posição. Sair da África e colonizar o resto do mundo. Negar a ideia de uma Terra plana e enfrentar o bravio e desconhecido Atlântico. Questionar as leis de um poderoso país, que foi criado sobre as bases da liberdade e da igualdade, marchar até a sua capital e provar que nem todos ainda são iguais.
Imaginar que é possível muda tudo.
Quando é preciso usar a imaginação significa que ainda não existe o que desejamos. E isso nunca foi problema para o ser humano. Quando Johannes Gutenberg inventou a tipografia, ou o processo de impressão com tipo móveis, não imaginava a revolução que iria fazer. As pessoas tiveram acesso a maiores quantidades de literatura, por isso precisaram cada vez mais de lentes para auxiliar na leitura. Isso impulsionou a pesquisa e o desenvolvimento do setor ótico na Europa, causando um salto na criação dos microscópios e telescópios. Com isso, é possível para imaginar o que houve na saúde e na astronomia. Conhecimento acessível e novas ferramentas de pesquisa dariam o pontapé inicial para o Renascimento.
O bem mais precioso do universo é a imaginação humana. “E hoje esses exploradores, humanos e robóticos, usam como guias infalíveis em suas viagens pela vastidão do espaço as três leis do movimento planetário que Kepler revelou durante uma vida de labuta pessoal e extáticas descobertas”, escreveu Carl Sagan, no livro Cosmos, de 1980. O homem que teve a mãe morta por suspeita de bruxaria, foi o mesmo que não abriu mão de seus valores. Seguiu imaginando um mundo diferente, um universo infinito, em que a harmonia era seu segredo.
Em meio a pressão da igreja que repelia qualquer ideia contrária a seus princípios, Johannes Kepler seguiu em frente. Em Somnium, a ficção científica que escreveu durante a fatídica Guerra dos Trinta Anos, ele fala do poder que os sonhos têm, e como a realidade é muito pouco para sustentar nossas ideias. “Num sonho deve ser permitido a liberdade de vez ou outra imaginar o que nunca existiu no mundo da percepção sensorial”, defende.
Gambino mostrou sua arte. Multifacetada. This is America é um apelo amargo, autobiográfico, de uma realidade imaginada por uma mente inquieta. É corajoso pois aniquila as barreiras da simples projeção criativa de quem traz à vida uma obra. Ele se mistura nela. Ao despir a cultura americana, despe a si mesmo, sem vergonha de mostrar o poder de uma imaginação que não perdoa ninguém. Essa é uma guerra entre realidade e fantasia, e em suas fronteiras há um lugar possível em que poucos ou quase ninguém deseja morar. Parece que Glover não se importa com o barulho. This is America, mas qual é a que ele ou todos nós realmente desejamos?
Consegue imaginar?