Meu avô matou uma mula

Quando meu avô decidiu domar suas mulas e usá-las como “motores” de prestação de serviços, ele escolheu o caminho mais fácil.

mula
cuidado para não matar a mula

“O que quer que você deseje fazer, vai descobrir na vida que,
se não for apaixonado pelo seu trabalho, não vai conseguir persistir.”

JEFF BEZOS

 

Eu não sei montar cavalos. Nunca soube. Mesmo vindo do interior de Minas, tive raríssimas oportunidades de estar sobre o lombo de um equino. Como neto de um lenhador profissional, vi muitos animais sendo maltratados durante o ofício de transportar a lenha que acendia vários dos fogões que alimentavam a cidade de Caratinga. Até os anos 70, era comum esse tipo de comércio, já que o botijão de gás era um artefato de extremo luxo para a maioria das pessoas da terra natal de meu pai. O ofício de puxar abarrotadas carroças era terrível para os animais. Reza a lenda de que um deles foi morto por meu avô, de tanto que apanhou durante uma das viagens de entrega. Definitivamente, a arte de domar cavalos, mulas ou até jumentos, de alguma forma, não me parecia apaixonante.

Por que contei essa história? Porque todos nós vivemos a mesma história. Acredito que o ser humano, sem exceção, nasce dotado de um poder, ironicamente, inimaginável.

A única coisa que nos permitiu sobreviver nesse selvagem planeta foi a nossa capacidade de imaginar. A imaginação é um “dom”. Mas, não se engane, ele não é tão divino assim, mesmo que tenha o poder de mudar realidades e transformar vidas. O corpo biológico que possuímos é frágil. Muito frágil. Se tivéssemos que contar apenas com ele, estaríamos perdidos. A imaginação humana nos deu poderes para superar todos os desafios de nossa existência. Mas, essa mesma imaginação é um animal selvagem.

E que continue assim.

Quando meu avô decidiu domar suas mulas e usá-las como “motores” de prestação de serviços, ele escolheu o caminho mais fácil. Claro que, dificilmente, ele teria consciência clara de seus atos naquele momento. Era quase um instinto. Quero apenas usar essa história real como uma metáfora, para simbolizar o que a maioria de nós acaba fazendo: encher a carroça com nossas melhores ideias, e entrega-las aonde forem solicitadas, sob a açoite de uma imaginação sendo domesticada.

A criatividade moderna é uma piada, ás vezes.

Adoro ler livros de história. Não porque há datas e sangue espalhados pelo chão; ou cidades, povos e línguas perdidos. A história sempre me mostrou um desfile de telas. Quadros nos quais eu podia ver o que nós, homo sapiens, podíamos fazer com tudo o que tínhamos em cada época. Um dia foi a roda; noutro o fogo. Daí a pouco, a agricultura. Mais adiante, a escrita e, então, a pólvora. Não demorou para singrarmos rios, mares e oceanos. Esses mesmos espaços que hoje submergem cabos de fibra ótica, por onde caminha a atual humanidade. O ato criativo humano está, hoje, em perspectiva. Pergunte ao Google que tudo se resolve. Está tudo lá. O oráculo que tudo responde também define a nossa criatividade.

Está certo? Errado, talvez?

Não é esse o meu ponto. O que desenha o meu medo é o fato de estarmos, cada vez mais, criando novas formas de domesticar as mulas do meu avô. Estamos, cada vez mais, dominando a arte de sermos criativos, mas, com isso, perdendo o seu charme selvagem. A imaginação humana é um animal selvagem. E precisa continuar assim. A melhor versão de um predador é aquela que ronda, furtiva, as pradarias e savanas. Não existe espírito criativo que caiba em um livro ou em uma simples palestra, e nem mesmo pode ser encontrado livremente em um buscador de Internet. Há riscos no processo criativo, e quem se propõe a entrar nesse mundo, preciso estar consciente disso, se quiser ser original.

Eu não sei domar cavalos. E é bom ter isso bem claro. Não se deve domar a criatividade. Deixe-a solta no imenso e vasto universo. Imaginação domesticada não nos serve de nada. Quando li sobre o projeto que lançou a sonda Voyager, percebi o quanto a mente humana é incrível. Imaginamos a possibilidade de encontrar vida além do sistema solar. Na estrutura da sonda, incrustados numa placa de ouro, enviamos uma série de símbolos, sons e imagens que esperamos que encontre um destinatário desconhecido. O qual poderá transformar nosso destino, se estiver lá, no infinito, e se for capaz de ler nossa mensagem. Se isso acontecer, culpem ou agradeçam ao astrofísico Carl Sagan, a ideia foi dele.

Essa é uma prova do poder da imaginação humana. Nossa imaginação não está mais presa à atmosfera terrestre. Ela está prestes a romper as fronteiras mais longínquas do universo conhecido por nós, e poderá não retornar sozinha.

Uma criança criando seus primeiros rabiscos é uma bomba explodindo. Com um mínimo de sensibilidade poderíamos sentir o chão tremendo, e imaginar o estrondoso estrago que será feito em sua ignorância se puder decolar rumo ao infinito, e além. Quando meu avô matou aquela pobre mula era porque ela não o obedecia, empacada, não querendo seguir o caminho que ele insistia em lhe impor.

Sobre a vida que seguimos, em relação a nós mesmos, sobre nossos amigos, funcionários, familiares e, principalmente, sobre nossos filhos, acabamos, de muitas e terríveis formas, escolhendo puxar forte o cabresto, erguer a chibata e não temer o resultado, mesmo que seja o sangue vertendo sobre suas cabeças, pois acreditamos que aquele tal bendito caminho é o melhor a seguir.

Será?

Uma mente livre é algo assustador. Concordo! Mas, apenas para quem ainda acredita que o talento precisa de jaulas, cercas, muros ou cabrestos. Para o criativo, aquele que encontrou o seu elemento, a sua arte, o melhor caminho é permitir que a imaginação permaneça como foi criada: selvagem. Isso vai garantir que não haja fronteiras para o seu poder, mesmo que ainda exista muitas pessoas insistindo em dizer que o céu seria seu limite.

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