Baseados em fatos reais: existe amor na Rússia

Pensei que chegaria intacta até o final da viagem, mas uma semana aqui e já não me resta mais nada — homens e mulheres, de várias idades, não perderam a chance de roubar as minhas certezas, e às vezes em plena luz do dia.

Na Rússia, todo dia (e não é exagero!) rola assalto à mão amada: roubam nosso ar, nossas palavras e o nosso coração. Ouço relatos constantes de brasileiros vítimas dessa “bandidagem”, que não perdoa nem aquele preconceito herdado, sabe?, aquele que veio, sei lá, dos nossos avós e já era parte da família e de todas as rodas de conversa.

Pensei que chegaria intacta até o final da viagem, mas uma semana aqui e já não me resta mais nada — homens e mulheres, de várias idades, não perderam a chance de roubar as minhas certezas, e às vezes em plena luz do dia.

Mas ontem foi diferente, foi na calada da noite, quando esse tipo de coisa acontece.

Eu seguia as instruções da mocinha do hotel, mas cheguei quatro minutos atrasada: o único mercado da região havia fechado. Pela janela via os últimos clientes finalizando suas compras, e eu batia no vidro, mendigando um pouco de compaixão — porque a fome, amigos, não sabe o que é passar vergonha.

O deserto da rua se alagou com a presença de uma senhora que passava por mim com sacolas na mão.

Perguntei a ela sobre opções de mercados ou restaurantes abertos àquela hora, mas o feriado colocou tudo e todos pra dormir.

– Eu posso lhe oferecer queijos, pães e frutas, o que você acha?
– Posso comprar essas coisas da senhora, eu tenho dinheiro
– Não, não, eu não quero dinheiro. Venha comigo.

O diálogo rolava com certa dificuldade, já que o vocabulário da senhora era limitado na língua inglesa.

Ela morava no segundo andar, numa espécie de república — outras duas pessoas viviam ali. Perguntou se eu preferia entrar ou me sentar na varanda. Disse que eu já estava atrapalhando por demais, e que estaria confortável onde ela achasse melhor.

Puxou uma cadeira, e ofereceu assento. Seguindo a cartilha de boa educação russa, perguntou se eu aceitaria uma água, e se eu gostaria de usar o banheiro ou lavar as mãos — a higiene russa, aliás, é chocante: sapatos não entram em casa e todo mundo pergunta se você gostaria de lavar as mãos. Sério, quando é que algum brasileiro te ofereceu isso um dia? Achei de uma delicadeza sem precedentes; a empatia deles transcende qualquer experiência que tive na vida.

Já posicionada na varanda humilde da Katherina — ela SÓ AGORA se apresentou; você entende que ela convidou uma mulher que ela nunca viu na vida, que não fala a sua língua e que nem sequer sabe o primeiro nome para comer da sua comida, dentro da sua casa?! —, vejo ela voltar da cozinha equilibrando alguns pratinhos e uma tigela.

Pão preto típico da região, queijo da melhor qualidade, tomate cereja, maçã e uma fruta deliciosa que me parece uma espécie de ameixa.

Enquanto comia, conversávamos sobre a vida. Ela é professora, mas trabalha aplicando provas. Mora ali há 15 anos e queria falar melhor inglês, mas não teve oportunidade de praticar. Sua filha foi diferente, fez cursos no exterior e domina vários idiomas. Se entendi bem, ela vive hoje na Suécia, onde estudou, veja só, línguas.

Está muito feliz com os amigos com quem divide o lar — nessa hora os dois saem para fumar, e nem estranham a estranha ali. A Katherine conta a eles que eu sou uma jornalista brasileira e que estava com fome. A outra mulher se apressa a dizer que acaba de cozinhar salsichas, e que poderia pegar algumas, se assim eu desejasse.

Já satisfeita, neguei a oferta, não sem antes perder um pouco mais do meu coração para essa gente tão generosa.

Checo o horário e constato que é hora de partir. Antes me disponibilizo para lavar aquela louça, mas ela nega com uma certeza que eu só tinha experimentado em casa — morar com vó tem essas vantagens! Rs

Katherina prepara ainda uma “marmita”, e me entrega uma sacola com frutas. Ela pergunta se pode me acompanhar até o portão, e caminhamos juntas até a saída do prédio.

Entrego a ela o abraço mais grato que sou capaz, e penso que já não tinha absolutamente mais nada a perder, mas a
Rússia, meu amigo, te vira do avesso.

Antes de fazer da Katherina um anjo do passado, ela segura a minha mão e diz:

– Obrigada por ter dedicado um pouco do seu tempo a mim.

Mano do céu, aí a coisa ficou russa: tive minhas lágrimas furtadas na calada da noite. E não foram poucas.

A violência carnavalizada e mascarada de malandragem não suportaria, mesmo, o inverno rigoroso dessa terra, não: pra aguentar menos 40 graus é preciso ter o coração em chamas, como eles têm aqui.

Há quem diga que você é o que você come, ou o que você lê; pois eu digo que você é o que você viaja — e, tomara, que você venha um dia para Rússia, para ser um pouco mais como eles também.

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