Porque a Força só tem dois lados

“O universo não é feito de átomos, ele é feito de histórias”.

A célebre frase da poeta Muriel Rukeyser é a explicação literária da relevância daquilo que contamos pros outros para formação da realidade que nos cerca.

A “contação de histórias” — ou, mais chique no inglês, storytelling =P  —  tem sido a base da transmissão de informações ao longo da evolução humana e, portanto, não é de se espantar que suas técnicas passem a ser adotadas em todos os campos da comunicação social, da educação à publicidade.

Sempre digo, porém, que storytelling é muito mais que contar histórias. A construção de uma narrativa não passa apenas pela sequência de eventos relacionados ao longo do tempo; em outras palavras, a história não é feita somente de sua história em si (frase ambígua, porém verdadeira).

Senta que lá vem história

O uso do storytelling nas distintas áreas de comunicação social está ligado, também, a compreender e planejar elementos que orbitam a narrativa principal (o “fato que acontece”) porém são críticos para que haja imersão do público naquela história. A compreensão de arquétipos, o sequenciamento planejado de emoções, a construção de conclusões antecipadas na cabeça do espectador (que vira expectador — ver a diferença entre um e outro =) ) compõem também o arsenal de ferramentas que os comunicadores utilizam para aproveitar o genético envolvimento do público para com uma narrativa.

reacoes

A base do envolvimento em uma narrativa é o grau de empatia gerado entre o público e algum (um ou mais) elemento da tríade narrativa: protagonista, universo e conflito. Enquanto o universo determina as bases sobre as quais os valores, naquele ambiente, são corretos ou incorretos, o protagonista enfrenta o conflito tendo como pano de fundo, na verdade, a busca pelo espelhamento com aquele que ‘queria ser ele’, ‘queria ser como ele’ ou, pelo menos, ‘queria ser seu amigo’: o público.

Nesta busca pela empatia, quanto mais simplória a interpretação dos valores dos personagens presentes em uma história, menor o esforço decisório e cerebral de quem está de fora e se vê, em determinado momento, obrigado a se envolver naquela narrativa.

Explico.

A insustentável complexidade do ser

Dada a incontável variedade de valores (aquilo que se considera certo ou errado) no mundo, a análise combinatória das possíveis situações resultaria em dezenas (centenas? milhares?) de micro-grupos (ou micro-audiências) e, quanto mais fragmentado, mais complexo se torna o recrutamento de iguais (tem-se que pensar mais para saber a qual destas dezenas, centenas, milhares de variações pertence sua empatia).

O “segredo do sucesso” para muitos criadores de histórias tem sido, então, simplificar ao extremo esta interpretação e, na maioria das histórias criadas, isto significou duas atitudes:

  • criar uma decisão dualista para o espectador (existem DOIS lados a serem escolhidos e só; ou você está em um OU em outro);
  • tratar o “conflito” como desejos opostos entre protagonistas e antagonistas (‘seu’ lado contra o ‘outro’ lado).

Esta é a fórmula mais básica, simples e, por isso mesmo, efetiva, que se tem conhecimento no universo das histórias (filmes, livros, games, religião, política).

Coxinha de mortadela

No recente cenário político brasileiro, constantemente vemos embates entre a “direita” e a “esquerda”, onde cada ‘lado’ tenta simplificar a interpretação do outro em uma tentativa de desqualificá-lo em função de alguns indivíduos que o compõem e que, não necessariamente, estão em acordo com todos os pontos defendidos por um ou outro; é uma falácia de composição, onde toma-se uma parte para representar o todo.

Neste momento, “direita” vira sinônimo de “racista, elite, religiosos, homens brancos, misóginos” e a esquerda vira sinônimo de “vagabundos, maconheiros, funcionários públicos”. Ambas abordagens são demasiadamente simplórias e, justamente por isso, atrativas para quem tem pouca capacidade pensante ou simplesmente pouco tempo para discorrer sobre os incontáveis tons de cinza entre um e outro. Alias, o mundo esta repleto de falácias categoriais: tomar a parte pelo todo (composição), tomar o todo pela parte (divisão), ignorar exceções (acidente) e usar exceções como regra geral (inversão do acidente).

Tomo a liberdade de me expor: Economicamente sou centro-direita (tendo ao liberalismo e Estado mínimo), abomino influência religiosa no governo, sou contra cotas mas combato preconceitos (e ‘ismos’) com todas as forças. Apoio qualquer tipo de relacionamento pois não me dizem respeito, mas tenho dúvidas se a liberação da maconha seria positiva no Brasil… ou seja, é uma mistureba entre os estigmas criados nos discursos políticos falaciosos impossível de ser classificada em ‘direita’ ou ‘esquerda’ (segundo estes pré-conceitos), mas também longe da isenção.

Confesso que não entendi, mas achei simpático! =)
Confesso que não entendi, mas achei simpático! =)

Mocinho contra Bandido

Também no mundo do entretenimento, o dualismo “bem contra o mal”, “heroi contra o vilão” é construído intencionando menor senso analítico de quem consome o conteúdo, de forma que o espectador fique mais focado no conflito em si, cuja essência permitiria, a princípio, um maior envolvimento emocional, do que na compreensão das nuances que formam os personagens envolvidos nele.

Harry Potter contra Voldemort, os Jedis contra os Siths (lado sombrio e lado luminoso da Força), 007 contra Golden-Eye, Vingadores contra Loki, Vingadores contra Vingadores (Guerra Civil)…. o universo midiático está repleto de modelos antagônicos simplificados e, na maioria das vezes, enviesados. Quem vai “torcer pelos vilões”? Desta forma, cria-se uma empatia coletiva que permite ao público “unir-se contra um inimigo comum” — uma das formas de aumentar os laços entre uma comunidade — e/ou gera-se uma polarização (#teamCap x #teamStark) cujo objetivo é justamente o recrutamento dos iguais (daqueles que concordam com você) para fazer frente ao “outro time” — na polarização e recrutamento reside o potencial viral. Apesar disso, o filme “Guerra Civil” foge do lugar comum do bem ou mal absolutos e, por isso, merece ser reverenciado.

Tanto faz seu #team, desde que você escolha um!
Tanto faz seu #team, desde que você escolha um!

Eu, tu, ele

Histórias que passam a envolver mais perfis tornam-se mais envolventes quando há possibilidade de maior grau de imersão no conteúdo consumido. Exemplo simples: no game “The Rise of the Tomb Raider”, a protagonista Lara Croft (por si só, um “lado”) enfrenta a Trindade (antagonista direto) enquanto tenta entender qual sua relação com o povo escondido de Yamatai, que, se por um lado, enfrenta a Trindade, por outro também tenta assassiná-la. Os Yamatai, então, são mocinhos ou vilões? Devo juntar-me a eles ou combatê-los? O inimigo do meu inimigo é meu amigo? A continuidade do jogo trata de esclarecer estas dúvidas, mas o mais importante aqui é justamente a adição de um terceiro elemento na balança entre “o que é certo e o que é errado”.

Games, aliás, tem demonstrado maior abertura à quebra do dualismo bem x mal. Em alguns MOBAs (Multiplayer Online Battle Arenas; grosso modo, jogos onde várias pessoas batalham entre si em um ambiente), a combinação do que chamam de “classes” e “raças” (diferentes tipos de jogadores e suas funções no universo lúdico) oferece ao espectador (agora, ativo) uma maior complexidade na decisão pelo apoio a um ou outro personagem.


A multiplicidade de perfis busca eliminar o absolutismo do bem contra o mal; tornando mais complexa (porém, mais imersiva) a vivência na história


Você pode ser ser um mago, um guerreiro, um ogro, um anão, um ser místico e nenhum deles necessariamente possui a bondade ou maldade absoluta, quer dizer, não existe UM bem contra UM mal, mas sim um monte de gente com opiniões diferentes tentando fazer valer o seu ponto de vista (ainda que isso signifique cortar cabeças com uma espada :)).

Já vimos isso em algum lugar? Claro, acho que se chama ‘vida real’.

Vantagens e desvantagens neste modelo: para quem busca maior grau de envolvimento (imersão) e quer ver a complexidade de sua própria existência representada no universo lúdico, isso é um prato cheio.

Mas pra quem “tá corrido”, “não tem tempo de entender tudo isso”, quer só se entreter ou simplesmente “ah, não me interessa”, é muito mais fácil ser um Jedi, ser um Vingador, ser o Jason Bourne, e seu “inimigo” ser um Sith, o Loki, o Voldemort, um coxinha ou um mortadela.

E assim seguimos a história.

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