A internet das pessoas

Estamos avaliando tudo. Motoristas de Uber, livros, carros, shows, restaurantes, lojas, etc. A moeda do futuro será aquilo que pensam de nós

A noite de terça-feira quase sempre é de happy-hour. Dessa vez me juntei ao parceiro de muitas filosofadas, que há tempos não encontrava. Júlio é um homem da tecnologia, mas sempre flertou com o pensamento complexo, com um pezinho na academia grega e seus descendentes. A gente sentou no boteco, perto das 18h07, quando o assunto começou logo a pegar fogo, antes mesmo das canecas de chope chegarem.

— O que vai acontecer com o mundo, com a tecnologia tomando conta de todos os aspectos da nossa vida? — perguntei à queima roupa.

Júlio é um cara que viveu bem seus 45 anos, criando três filhas, num casamento que dura uma eternidade para os tempos modernos. O sujeito não tem papas na língua, para nenhum tipo de assunto. Por isso não resistiu à tentação e foi estudar filosofia na UFJF, depois de prestar o ENEM, no ano passado. Parece uma criança quando conta das aulas de metafísica.

— Cara, é inevitável que as máquinas, de alguma forma, acabem tomando conta de tudo em nossas vidas. Uma hora, teremos aplicativos governando nossas ações, mapeando nosso dia a dia, como já é feito hoje, mas num nível muito mais completo e complexo. — disse ele, sem fazer cerimônia.

Lembrei de uma entrevista com Yuval Noah Harari, na qual ele fala de seu novo livro 21 lições para o século 21 e os desafios desse momento em que vivemos. Com os efeitos do desenvolvimento das inteligências artificias, que já se mostram perfeitamente perceptíveis, mas sem deixar clara a direção para a qual estamos indo, ou se, de alguma forma, na verdade, seremos levados contra a nossa vontade. Harari comenta da ineficiência das autoridades do mundo todo para criar legislações capazes de harmonizar a expansão das IA’s e a nossa adaptação a isso. Empregos sempre foram extintos por causa da evolução científica, mas, paralelo a isso, sempre criou-se novos, alinhados aos novos tempos. Entretanto, a rapidez com a qual as coisas acontecem atualmente, deixam incertas as nossas chances de superação.

Estamos avaliando tudo. Motoristas de Uber, livros, carros, shows, restaurantes, lojas, etc.; enfim, tudo! Claro que nem todos nós somos justos na hora de escolher as estrelinhas que vamos oferecer. No episódio Nosedive da aclamada série Black Mirror, conhecemos uma realidade na qual as pessoas são aceitas ou não de acordo com a avaliação social acumulada. Uma pessoa com nota acima de 4,5 está muito bem. Acima de 4,7 você faz parte da elite. Mas, se sua nota estiver abaixo de 3,1 eis o hades, o limbo, o inferno perfeito.

— Você acha que essa lógica vai chegar até nós, quando seremos avaliados em tempo real? — joguei mais uma sobre ele.

— Se você tem um CPF, então já participa disso. Existem níveis para tudo, hoje em dia. Seu score determina o que você pode comprar e como vai pagar. Já estamos sendo avaliados, em todos os níveis, principalmente nos que mais importam hoje.

A Internet das Coisas está conectando todas as camadas dessa nossa realidade. Eletrodomésticos, carros, TV’s, além de computadores e afins, estão cada vez mais conectados, em vários níveis. A Internet das Pessoas (acabei de inventar isso) vai copiar essa lógica e nos manter ligados, de muitas formas e nos mais variados níveis. As sugestões automáticas que as máquinas já fazem sobre suas necessidades de recarrega, manutenção, etc. serão adaptadas à nossa realidade humana. A necessidade de rapidez e praticidade em nossas vidas diárias vai exigir que nossa reputação seja simplificada em apenas um score geral, que resuma o nível de confiabilidade que oferecemos. Por isso, o registro geral de tudo o que acontece com a gente vai pesar nessa classificação, com nosso CPF, IP e tudo o que marca nossas ações seja mapeado, para gerar uma nota que vai abrir ou fechar as portas por onde desejarmos passar.

Harari diz que os maiores desafios que iremos enfrentar não serão apenas as máquinas conscientes, que possivelmente vão nos roubar os empregos. Ele teme uma realidade na qual nossos governos não sejam capazes de lidar com a crise que será criada pela proliferação das IA’s, permitindo que talvez ocorra algum tipo de catástrofe social.

Os métodos de avaliação são inevitáveis.

Mas, será que teremos meios eficientes para fazer isso? Essas notas serão usadas de forma justa e inteligente? Seremos capazes de fazer boas escolhas e agir com seriedade diante disso?

A internet tem evoluído para satisfazer necessidades, de todos os tipos. O mundo que está aparecendo bem diante de nós faz exigências das quais ninguém poderá se abster. Sem a avaliação adequada não poderemos comprar e nem vender: viver será uma questão de crédito (confiança acumulada). Nossa futura avaliação vai determinar os tipos de hospital, restaurantes, clubes, lojas, bairros, etc. que poderemos frequentar, pois vai determinar que empregos teremos e se até mesmo teremos algum.

A nova moeda do futuro será aquilo que pensam de nós. Somos confiáveis?

Isso já é antigo, pois cédulas de dinheiro são apenas documentos públicos que confirmam que podemos confiar que aquele pedaço de papel poderá ser trocado por mercadorias e serviços. Como os cartões de crédito também o fazem. Acreditamos também no valor que eles representam. A diferença é que na Internet das Pessoas, seremos julgados pelo mundo ao nosso redor. Poderemos confiar nele?

Em breve, nosso valor pessoal estará visível e será usado para garantir crédito e determinar nossos círculos de convivência. Como sempre aconteceu, mas desta vez teremos cérebros digitais cruzando dados e registros sobre nós para gerar um rótulo provisório de quem nós somos e o que poderemos fazer. Uma espécie de “deus digital” que vai avaliar nosso comportamento, como nos relacionamos com as pessoas e as empresas, e assim determinar se merecemos o céu ou o inferno. Talvez um purgatório, enquanto lutamos desesperados por atenção, palmas e estrelas, trocando curtidas em nome de uma busca que não sabemos onde poderá nos levar.

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