Metralhadora cheia de mágoas

 

“Os medíocres acham que todos são iguais.”
Blaise Pascal

 

Muitos filósofos defendem que a busca humana pelo ato criativo está vinculada à ideia de que sabemos que somos finitos, de que vamos morrer, e que não podemos dominar o tempo; de que o tempo, definitivamente, não para. Pode ser. Difícil ter certeza. Mas, uma coisa é certa, a dor é um dos maiores e mais eficazes catalisadores da nossa criatividade.

Isso está explícito na história da arte. Basta dar uma breve olhada nas páginas de um bom livro sobre o tema. Dificilmente, a felicidade motiva a criação de obras de arte. O Pensador, de Rodin, não parecia muito feliz com aquela pesada cabeça pendendo sobre a sua mão direita. A Guernica não era uma alegoria ao aniversário de nenhum dos filhos de Picasso; e a Monalisa até hoje não nos convenceu se realmente está rindo.

A sofrência está aí, para provar que não estou falando uma bobagem tão grande. A desgraça vende mais jornais. A tragédia mantém mais TV’s ligadas. Quem matou Odete Roitman? E como terminou Avenida Brasil? Por que somos apaixonados pelo Darth Vader? Até em A Vida é Bela, de Roberto Benigni, a desgraça, mesmo travestida de brincadeira, ainda era desgraça em uma de suas piores facetas.

A dor alheia e a dor particular pavimentam o fluxo de sensações e sentimentos que, muitas vezes, só podem ser descritas com precisão, ironicamente, através da poesia, da música, do cinema, da literatura, enfim, da arte como um todo.

E isso ajuda a vender.

Cultuamos a força que existe nos eventos amargos que ocorrem no mundo. Bandas de rock tiveram sucessos com músicas feitas durante períodos de crise entre seus membros. A própria guerra foi motivadora de atitudes profundamente inesperadas em muitos países, cujas populações foram capazes de se mobilizar e mudar os rumos da história, para o bem e para o mal.

Quando li o texto do maestro Billy, Inteligência Artificial e Música, no UoD, comecei a fazer muitas perguntas sobre originalidade. Voltaire dizia que a originalidade “não é mais do que uma imitação criteriosa”. Claro que copiamos sempre, e de muitas formas. Precisamos de referências. Sem elas, não teríamos um mapa para chegar a novos lugares, ou de onde começar algo novo, a partir do já conhecido. Mas, mesmo o “ato de copiar” sendo regra geral no processo criativo, acredito que a ousadia de se rebelar contra o status quo nos ajuda de alguma forma a aperfeiçoar nossas criações, pois podemos levar em conta o que está pronto e usá-lo como negação, seguindo caminhos contrários.

As Inteligências Artificiais prometem muito, e, certamente, vão entregar muito. A transformação que está mudando nossos dias, gradativamente, sem nem mesmo percebermos, prova que sem a ajuda dessa tecnologia será impossível viver nesse novo mundo digital.

A criação de música é apenas mais um campo onde ela estará presente.

Concordo com o texto do maestro Billy, e acredito que as “máquinas” podem ajudar nos processos criativos. Mas, acredito também que a arte da criatividade pura, que precisa de doses cavalares de rebelião, não poderá ser simulada por um algoritmo. Pelo menos, por enquanto. A história da arte mostra um pouco disso. E, na música, percebemos que o conformismo nunca rendeu sucesso a nenhum compositor. Sucesso de verdade, a ponto de torná-lo inesquecível.

A reinvenção de conceitos, fugindo do lugar comum, sempre ajudou a mudar a história da música. Máquinas ainda precisam de códigos para funcionar, e banco de dados para buscar as suas respostas. Dificilmente poderão tomar decisões “loucas”, estocásticas, desvairadas, pela simples vontade. A máquina criará muita coisa boa, mas sempre dependendo do que estiver disponível em suas bases de informação. O “maluco beleza” que faz experimentações ainda continua a ser o homo sapiens, que nunca se cansa de fugir dos lugares que ele mesmo inventa. Principalmente quando os motivos são sufocantes, amargos e, no confronto com a realidade, percebe que seu tempo corre, inevitavelmente, contra ele.

Viktor Frankl pode exagerar quando diz que não somos produto das circunstâncias, mas das decisões que tomamos. Afinal, nem sempre temos estrutura emocional ou referências suficientes para lidar com os dramas que vivemos. Nessas horas drásticas, diferentes das máquinas que travam por falta de variáveis, podemos apenas chorar. Talvez, mais tarde, criar um poema, pintar um quadro, compor uma música, rascunhar um roteiro, escrever na areia, esculpir um rosto, dançar até cair, etc.; encher a cara, e, depois, fazer tudo de novo; temendo o tempo que municia nossas mentes com as mágoas que usaremos como inspiração. A máquina precisa de ordens, nós apenas de bons motivos. Afinal, como o próprio Frankl também dizia, entre o estímulo e a resposta “está a liberdade de escolha”.

O que vamos criar hoje? Cazuza responderia: se você achar que eu tô derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados; porque o tempo, o tempo não para.

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