Deus da Criatividade

“Uma mente ativa demais não é mais uma mente”

Essas são palavras de Theodore Roethke. Não, ele não se formou em neurociência, o cara era um poeta, um dos melhores de sua geração. Roethke morreu em 1963, aos 55 anos; ou seja, as duas grandes guerras mundiais, e suas consequências, lhe serviram de inspiração. Viu o que de pior o ser humano pode produzir, e escreveu sobre isso.

Não se preocupe, o papo aqui será sobre criatividade. O peso de guerras e conflitos será deixado de lado, pois já estamos sob pressão demais nesse momento em nosso país.

Já escrevei sobre o tema no texto O Demônio da Criatividade, mas quando li a matéria A Era da Burrice, publicada pela Revista Super Interessante, resolvi voltar aos rascunhos e tentar construir algo para descrever o que se passa, pelo menos na minha cabeça; já que a bendita não sossega nunca. Quem já me conhece ou leu meus textos sabe que ando estudando a mente humana e o processo criativo. Nesse caminho, que já dura alguns anos, pude perceber que existe informação de sobra, mas a maioria acaba sendo ou inacessível ou sem muita credibilidade.

A criatividade é “vendida” como uma coisa, um presente, uma dádiva. Como sempre chocou e surpreendeu o mundo, era mais fácil dizer que havia algo de espiritual e mágico nela, principalmente porque a turma envolvida em projetos criativos era gente de expressão, pessoas com acesso a recursos financeiros. Pessoas criativas ganhavam status. Daí a necessidade de se cobrar ingressos caros para se ter acesso ao Olimpo, onde moravam os gênios, deuses da criação humana, aqueles que com o toque de suas mãos mudavam os rumos da humanidade.

No primeiro texto, o “demônio” era a depressão e a sua capacidade de nos pressionar em muitas direções, para pulsos de genialidade, mas, muitas vezes, para abismos escuros de onde poucos conseguem voltar ilesos. Não vá imaginar que o Deus da Criatividade seja um nêmesis, que luta ou lutaria contra um possível demônio, como numa lógica Yin e Yang. Há muito nesse universo a ser discutido, e não seria possível esgotar o assunto aqui nessas poucas linhas.

Durante a leitura do livro O Caminho do Artista, da escritora e dramaturga Julia Cameron, comecei a pensar sobre essa coisa de espiritualidade no processo criativo. Ela defende uma força espiritual metafísica, quase ou totalmente religiosa, todavia diz também que não é necessário que o leitor abrace isso para despertar a sua “força interior” e liberar a sua criatividade, derrubando os bloqueios em seu caminho como artista. Lembrando que artista aqui são todas as pessoas que sentem vontade de se expressar, e isso inclui todo ser humano vivo, em menor ou maior escala.

Esse é o Deus da Criatividade para Cameron. A força que nos emociona. Essa energia que nos move a conhecer as coisas e as pessoas; a descobrir o mundo, a viajar e romper limites. Para ela, esse é o poder que circula em uma planta, vindo de sua raiz, passando por todo o seu corpo até as suas extremidades, onde estão flores coloridas, à espera de que sirvam para decorar o mundo e ser palco de algum inseto que leve algo daqui para outro lugar, onde poderá servir de inspiração para criar coisas novas e renovar o espaço onde vive.

Claro que essa tal força é dependente do solo onde está plantada. Assim como nós dependemos da forma como alimentamos o nosso repertório. Nossas emoções são escravas da dieta que oferecemos ao nosso cérebro, das experiências que vivemos; cada uma delas. O que lemos, ouvimos, falamos, assistimos; as pessoas com quem convivemos. Isso tudo forma um ecossistema interno onde flui um espírito que governará nossas decisões. Um Deus só nosso, capaz de qualquer coisa, mas que depende de como alimentamos a nossa relação com esse mundo interior.

Não existe criatividade. O que existe é a natureza humana, e a sua insaciável fome por novidades. A nossa capacidade de criação depende da forma como alimentamos nossos sentidos. Todos eles. A tecnologia nos pegou de surpresa e estamos sendo tomados de assalto, dia após dia, com uma quantidade de informação e novidades que não conseguimos dar conta. Isso veio nos emancipar e mudar completamente nossos horizontes e possibilidades; mas está nos deprimindo de muitas formas, e, de outras, nos tornando burros e insensíveis. Na palma da mão vem tudo pronto; não precisamos imaginar quase nada. E começa a ficar impossível desejar um mundo diferente disso. Existem aplicativos para matar quase todas as nossas vontades e resolver quase todos os nossos problemas. As pessoas mais criativas do momento são aquelas que inventam App’s que tornam as nossas vidas cada vez mais fáceis; e estamos adorando isso.

Mas, até quando?

As estatísticas, no mundo todo, já mostram que as crianças estão tendo dificuldades para lidar com textos, e, por isso, perdem até mesmo a capacidade de falar com fluidez, daí, comprometendo a capacidade de articular ideias. Será que o homosapiens, que saiu da sua condição de caçador-coletor, pois conseguiu se valer do poder da linguagem, e, depois, criou linguagens de programação, capazes de codificar computadores, escreveu, talvez, a sua própria sentença de morte?

Estamos transferindo para dentro de máquinas digitais, pelo menos tentando, o tal Deus da criatividade: a força que nos diferencia de toda a criação viva desse planeta. Em breve, tudo será feito em uma tela sensível ao toque. Em breve, talvez, espero que não, tenhamos perdido a nossa própria sensibilidade. Essa capacidade de perceber o mundo através dos sentidos, alimentando o “espírito” que dá vida às ideias que povoam o nosso imaginário. Mas, para isso, precisamos de motivos. Parece que nos viciamos tanto no conforto dos botões que aprendemos a apertar que, até a fé necessária para manter o Deus da Criatividade pulsando, vai precisar de um aplicativo para continuar viva.

Uma mente ativa demais não é mais uma mente; talvez seja uma oportunidade para encontrar a nossa humanidade, e nos reconectar à realidade, aquela que não tem um botão de reset, que nos obriga a sermos únicos, donos de nossos próprios caminhos. Utópico? Claro, ora! Não seria se não fosse sedutor e extravagante. Dá medo, sim, ter opiniões próprias e andar sozinho, às vezes; mas, mesmo que demore, a gente acaba achando alguém que se identifica com o perfume das flores que produzimos, que curte o que criamos. Só não podemos é ter medo de nos mostrar ao mundo. Nunca!

Amém…

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