É perigoso ser obsoleto

Quando crianças, nos perguntam o que queremos ser no futuro, mas a maioria das vezes é para rirem das respostas engraçadinhas que damos. Parece que ainda há tempo suficiente para decidirem sobre isso, em escolas que dificilmente serão sensíveis para oferecer oportunidades de harmonizar os muitos talentos que alguns têm.

“Qualquer tolo inteligente pode fazer com que as coisas fiquem maiores e mais complexas […] mas é preciso […] muita coragem para seguir na direção contrária.” – Albert Einstein

A frase que ilustra o título acima está na página 105 do livro 21 Lições para o Século 21, editora Companhia das Letras, escrito pelo cara que resolveu assustar todo mundo: Yuval Noah Harari. “O surgimento da IA pode extinguir o valor econômico e a força política da maioria dos humanos”, disse o historiador, no mesmo livro. Para ele, a ascensão da tecnologia nas áreas de bioengenharia e inteligência artificial poderiam, juntas, resultar na divisão da humanidade em uma pequena classe de super-humanos e uma massiva subclasse de Homo sapiens inúteis.

Em um possível cenário futuro, no qual boa parte do trabalho será feito por máquinas, que não recebem efetivamente pelo que fazem, e nem demandam direitos trabalhistas, possivelmente afetará a situação econômica e política dos trabalhadores de carne e osso, gente que precisa de leis e direitos para viverem em sociedade. Entretanto, uma vez perdida essa relevância, o Estado poderia perder também o interesse em investir na sua saúde, sua educação e em seu bem-estar social. A paixão que nos conecta às máquinas poderá ser o motivo de nos tornarmos obsoletos.

O que você quer ser quando crescer?

Para muitas famílias abastadas talvez essa pergunta ainda faça sentido. Mas, para muitos que vivem em situação precária, sem esperanças concretas, talvez, ao invés de tentar ensinar caminhos para a emancipação econômica, melhor seria prepara-los para usar uma arma. Claro que são apenas conjecturas, mas precisamos pensar a respeito. Famílias ricas poderão pagar para que seus filhos aprendam o que será melhor para eles, e mudar a direção e se adaptar com mais facilidade, caso seja necessário. Famílias pobres mal conseguem comer. O máximo de adaptação que conseguem, muitas vezes, é colocar o feijão por cima ou por baixo do arroz.

Parece sombrio demais, mas não é nada diferente do que sempre foi.

Até onde sabemos houve uma turminha que mandava e uma galera que obedecia. O rei e a hiena, o leão e o bobo da corte, os burgueses e a plebe, os predadores e a manada. Enfim, no caso dos sapiens, premeditamos nossos atos; criamos e manipulamos sistemas contra e a favor, dependendo das regras do jogo, e dos jogos de interesses. E, hoje, o conhecimento é a arma mais poderosa, a moeda mais valiosa. Estamos colocando lentes e sensores em todos os cantos do mundo; em carros, esquinas, sobre e sob a pele das pessoas, e onde mais for possível.

O poder de prever atitudes humanas é o Santo Graal, há muito buscado. Quem não gostaria de saber exatamente se vai chover ou não, ou qual papel vai subir na bolsa de valores, ou, quem sabe, qual produto vai vender mais? Melhor, em quem as pessoas vão votar?

Esse poder encanta e seduz; quem o tiver governará o mundo.

Segundo Stephen Hawking, sempre ansiamos por compreender a ordem subjacente do mundo. Para ele ainda hoje almejamos saber por que estamos aqui e de onde viemos. “O desejo profundo da humanidade pelo conhecimento é justificativa suficiente para nossa busca contínua”, defende. Mas, a que custo? Maridos e esposas dariam qualquer coisa para saber o que passa na cabeça de seus parceiros. E, não se engane, empresas e governos do mundo todo também. Essa informação é valiosíssima. E com a evolução das tecnologias digitais, poderemos mais do que sugerir pensamentos, mas ditar o que você pode e deve fazer.

Já demos ao Google e aos muitos algoritmos a autoridade para dizer a nós qual a melhor decisão. Com o tempo, será quase impossível decidir algo sem perguntar a um dispositivo eletrônico se estamos no caminho certo.

Depois de assistir à palestra “Why some of us don’t have one true calling”, com Emilie Wapnick, no TEDxBend, comecei a pensar em como será esse cenário amargo e sombrio para a maioria das pessoas que ainda não entenderam perfeitamente o seu papel na vida. Ela, de forma bem interessante, fala da teoria dos Multitalentosos, gente com vários potenciais e, na maioria das vezes, com nenhum deles verdadeiramente bem definido ou desenvolvido. Esse povo que anda com taxas de ansiedade no talo; tentando de tudo, seguindo várias possibilidades, indo fundo naquilo que atiça uma paixão incontrolável e, em algum momento, quando o fogo se apaga e o tédio se acumula, seus olhos são levados para outra direção. Lá vão eles de novo, em busca de algo novo para manter o seu coração batendo na velocidade certa: o máximo possível. A mente quase explode.

Claro, nem todo mundo é Multipotentialite, como Wapnick chama a ansiosa galera que possui uma penca de talentos mal desenvolvidos. Os multitalentosos são seres dotados de uma curiosidade acima da média, com dons criativos espetaculares, cheios de energia e vontade de transformar o universo ao seu redor. Porém, vivem em um mundo que insiste em torna-los especialistas em alguma coisa. Haja frustração. Quando crianças, nos perguntam o que queremos ser no futuro, mas a maioria das vezes é para rirem das respostas engraçadinhas que damos. Parece que ainda há tempo suficiente para decidirem sobre isso, em escolas que dificilmente serão sensíveis para oferecer oportunidades de harmonizar os muitos talentos que alguns têm.

É perigoso ser obsoleto?

Claro! Sem a menor dúvida. Mas, a pergunta mais importante seria: o que é ser obsoleto?

Paul Bloom, em outra palestra no TED, fala sobre As Origens do Prazer. Interessante ver como o valor das coisas varia de acordo com o seu nível de originalidade e a sua história. Obras de arte possuem valores exorbitantes se lhes são conferidos atributos que as tornam únicas. Marcas de telefone, refrigerantes, carros e vinhos, por exemplo, são mais caras que outras porque existem histórias muito bem contadas pelas agências de publicidade que as vendem. Uma caneta talvez custe apenas alguns dólares, mas uma caneta que assinou a declaração de independência dos Estados Unidos muda tudo. Até você descobrir que não haviam canetas naquela época.

E o que isso tudo tem a ver com os talentosos sem rumo e o iminente apocalipse que nos tornará obsoletos?

Boa pergunta!

Nem todos serão capazes de superar os desafios que, inevitavelmente, assolarão o mundo muito em breve. Haverá muros separando os “bons” dos “maus”. Sejam eles físicos ou sociais, não importa. O que importa mesmo é aprendermos a lidar com as nossas próprias limitações emocionais. Multitalentosos aprendendo a conectar seus múltiplos potenciais, a fim de construir processos criativos mais saudáveis, aliados àqueles que se veem mais confortáveis alimentando um talento apenas, mas de forma profunda e dedicada. Essa união pode dar força para criações estáveis, cheias de possibilidades, pois os envolvidos não se importaram em testar todas as conexões possíveis. Assim há menos ansiedade, talvez. Não menos máquinas, mas dispositivos cada vez mais humanizados, empreendendo dentro de um universo em que o conhecimento compartilhado é usado para tornar nossas vidas cada vez melhores.

À medida que a tecnologia nos ameaça com a obsolescência, acontece alguma coisa. Essa ansiedade nos move na direção do problema. Dessa vez, será preciso um salto maior, mais perigoso e sem muitas certezas do resultado final. No entanto, devemos ir em busca do “true calling”, como Emilie Wapnick diz, mesmo sem nenhuma certeza se estamos indo na direção certa, pois ainda não temos um dispositivo eletrônico capaz de responder às perguntas que nos assombram todos os dias; mas, temos corações e cérebros movidos a impulsos elétricos, nos deixando não muito longe das máquinas que tanto nos assustam.

 

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