O herói das mil faces

Ele nasceu no dia 28 de dezembro de 1922. Não houve glamour, nem mesmo berço de ouro; na verdade nem berço tinha. A origem simples na periferia de Nova Iorque não o impediu de se tornar uma das maiores referências da cultura pop. Esse herói costumava defender a ideia de que o maior superpoder era a “sorte”. Eu discordo. Ele mesmo provou para todos que a sorte é algo que a gente pode e deve construir, ou melhor, desenhar; com as próprias mãos.

Stan Lee tornou-se um ícone. Casou-se, inevitavelmente, com a história dos Estados Unidos e mudou para sempre a história do resto do mundo, alterando o destino dos super-heróis como eram conhecidos. Ele não criou os primeiros, mas criou um tipo clássico, impossível de ser ignorado ou esquecido.

Os heróis surgiram para preencher o vazio criado pelo avanço do conhecimento e da tecnologia, e o distanciamento dos ideais religiosos. Claro, eles beberam nas águas da mitologia antiga, que ditava as regras religiosas em tempos passados, mas dessa vez estavam mais próximos da realidade humana, mesmo com talentos e poderes incríveis. As crises econômicas, rupturas sociais e as grandes guerras do século XX exigiram a criação de símbolos para guiar um mundo em plena convulsão.

Os primeiros super-heróis nasceram para dar esperança às pessoas. A grande depressão americana e a segunda guerra mundial foram o palco para surgirem personagens como o Superman, Capitão América e o Batman. O clima de incertezas precisa ser aliviado com a ideia de que uma força maior poderia nos salvar. Enquanto milhões de soldados e civis, principalmente judeus, morriam tragicamente, uma versão colorida dos conflitos precisava ser dada às pessoas do outro lado do Atlântico.

Stan Lee conhecia todos esses problemas e simpatizava com a dor das pessoas, tanto que se alistou e foi para o front. Durante a segunda guerra, foi designado como roteirista e produtor de informativos para as tropas. Inclusive criando materiais de prevenção contra doenças venéreas. De volta à América, debruçou-se sobre a máquina de escrever e começou o parto dos filhos que marcariam a história do seu país e do resto do mundo.

Ele entendia a necessidade de provar que heróis estão em todos os lugares e que é preciso mais coragem do que super poderes. Na verdade, segundo ele mesmo, quando percebemos o quanto podemos fazer pelo mundo, também descobrimos o nível de responsabilidade que isso traz. Seus heróis ou ganhavam seus poderes ou nasciam com eles, mas todos sofriam da mesma forma e pelo mesmo motivo. O “poder” trazia consigo obrigações e, como não se pode negar, dilemas. E qual ser humano, por mais demasiado humano que seja, não tem as suas dores de estimação?

Lee viveu muito. Conheceu as variadas faces do século 20 e as suas convulsões culturais. À medida que a história serpenteava em direções diferentes, seus heróis eram obrigados a acompanhá-la; vivendo novos dilemas, inspirando novas gerações e se reinventando para sustentar sua relevância. O tempo o ajudou a emancipar seus personagens, aumentando o alcance de suas revistas, trazendo também heróis negros, adolescentes, mulheres, dentre outros. Essa ousadia não passaria despercebida.

Nesse intervalo, Stan Lee encarou a censura do governo americano, a falência de seus negócios e até mesmo fraudes por parte de seus sócios. Mas, nada disso o derrubou, aliás, acredito que tenha até fortalecido o espírito de uma mente criativa que voava mais alto quando encarava ventos contrários. Todas as suas dores podem ser percebidas em seus personagens, de muitas formas. Seres que, muitas vezes, tinham a sua versão pessoal do fatídico “afasta de mim esse cálice”.

Hulk, Homem Aranha, Demolidor, Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, X-Men. Não preciso contar a história de cada um deles. Você as conhece muito bem. Dor e sofrimento fazem parte da rotina de todos, mesmo do bilionário e filantropo. Afinal, viver com o peito prestes a explodir a qualquer momento não deve ser muito confortável para ninguém, mesmo para um playboy.

Geeks e nerds se amontoam em Comic Con’s, ano após ano, onde um dia foi apenas um encontro para meia dúzia de “degenerados” e excluídos, hoje reúne milhares de pessoas em San Diego, e outros milhões pelo mundo, orgulhosos de suas escolhas esquisitas. Uma indústria que mal se pagava, gerida por gente estranha e imigrantes pobres, hoje movimenta bilhões de dólares. Eis o poder das ideias.

Quando Stan Lee percebeu que os heróis seriam eternos quando fossem parecidos com a gente, ele também escreveu o capítulo de ouro de uma saga que marcaria a vida de todos nós. Você pode até não gostar de revistas em quadrinhos. Não precisa. Mas, é impossível não se emocionar com a história desses heróis que possuem poderes fictícios, mas têm emoções humanas, exatamente iguais àquelas que nos atormentam todos os dias.

Lee é o herói de sua própria história, que ofereceu a ele infinitas oportunidades para desistir, porém ele escolheu criar novos heróis mascarados, enquanto o seu rosto ficava mais conhecido a cada nova superação. Ele viveu por quase um século. E a herança que deixou para os fãs é inestimável, sem prazo de validade. O herói de mil faces provou que os verdadeiros heróis podem e devem ser humanos, desde que não neguem a sua própria humanidade. Isso lhes dá poderes impossíveis de serem ignorados. Esse é o verdadeiro poder de Stan Lee; o seu verdadeiro legado.

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