Me ajuda a olhar

“O Livro dos abraços”, de Eduardo Galeano. Um livro sensível, a começar pelo título na capa.

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!”

Dia desses, me reencontrei com esse texto. E falo reencontro porque ele cruza meu caminho como um velho amigo que, ao se deparar comigo na rua, traz a saudade na intimidade do abraço. Não deve ser coincidência que o texto “Função da Arte” esteja no “O Livro dos abraços”, de Eduardo Galeano. Um livro sensível, a começar pelo título na capa.

O nome me pega. Nesse momento em que a proximidade está temporariamente censurada, sinto falta da minha família, dos encontros, do carinho. Mas também entendo que é a falta de contato nesse meu apartamento-sem-saída que me levará a aguçar outros sentidos. E é daqui que parto em direção ao meu pensamento.

Diego – a criança ali de cima – traz um olhar fresco, um olhar da inocência, da ingenuidade, da primeira vez. Um olho que ainda não consegue significar tudo e, por isso, se surpreende. Nesses pequenos m2, compreendo a importância de aprender a enxergar para além do óbvio, longe do que estou acostumado. Ter pupilas dilatadas para o estranhamento. Mas como enxergar o que ainda não consigo ver?

Olho pela janela da sala, vejo prédios e mais prédios. Nuvens sobrevoam no céu, árvores balançam com o vento. Aparentemente, tudo caminha igual. Mas sei, a vida que nos espera pede por uma revisão de valores. Repensar prioridades, o tempo, a maneira como percebemos o outro. Aliás: percebemos o outro?

Esse é o dom de Eduardo Galeano. Ele tem um olho no microscópio e outro no telescópio, como bem definiu um jornalista. E traz no seu texto essa capacidade de destreinar os nossos olhos para o usual. Exatamente o que vamos precisar daqui pra frente. Porque o mundo que nos aguarda logo ali, depois da esquina da crise, não será mais o mesmo. E nós também não devemos ser.

Diante das convicções envelhecidas, é preciso encarar nossas incertezas. Abrir a porta do desconhecido, pisar nos nossos desmatamentos de dentro e ressignificar a felicidade. Nas palavras de Manoel de Barros, “a importância de uma coisa deve ser medida pelo encantamento que ela produz na gente”.

Olho de novo para fora. Faço da janela um quadro para o mundo. Nessa moldura, nuvens nadam em correnteza de céu, árvores abanam seus rabos de galho ao menor sinal de vento. Me imagino em uma caminhada livre de angústias, a observar novos contornos e encontrar novas nuances. Desejo que, ante a imensidão das pequenas coisas, eu fique mudo de beleza. E, se eu não conseguir, que alguém me ajude a olhar.

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