É preciso inventar de novo o amor

“Porque o samba é a tristeza que balança/ E a tristeza tem sempre uma esperança/ A tristeza tem sempre uma esperança/ De um dia não ser mais triste não/ Feito essa gente que anda por aí/ Brincando com a vida/ Cuidado, companheiro!/ A vida é pra valer/ E não se engane não, tem uma só/ Duas mesmo que é bom/ Ninguém vai me dizer que tem/ Sem provar muito bem provado/ Com certidão passada em cartório do céu/ E assinado embaixo: Deus”

Há tempos tenho ouvido um texto dentro de mim. Ele me cochicha verdades, eu finjo que não escuto e sigo adiante. Ele me acorda de madrugada, arregala meus olhos para a escuridão de dentro, um incêndio de pensamentos. Não há mais como dar de ombros. Adiar um texto é adiar a gente mesmo. Então, senta aqui, vamos conversar.

Esse texto não é linear, não tem o ritmo do Samba da Benção ali de cima. Ele traz o incomodo das pessoas que ignoram a quarentena, que saem sem máscara, que tossem ignorâncias nas redes sociais e brincam com a vida. Ele traz a dor das pessoas que precisam trabalhar e não conseguem. A angústia daquelas que nos entregam comida e se entregam ao que podem.

Esse texto não tem a fluidez da Bossa Nova. Está mais para um carrinho de bate-bate, a mudar de direção de segundo em segundo, a bater em todos os cantos da minha cabeça. Intercala suspiros de sofrimento, ansiedade, tranquilidade, fadiga, frustração. Sua direção é tão linear quanto a lógica de ter um cansaço gerado pelo excesso de energia acumulada: absolutamente nenhuma.

Esse texto me leva a muitos lugares, pensamentos soltos, momentos perdidos. Peço que vá embora, que solte a minha mão, ele não quer. Para onde estamos indo?; preciso me concentrar no trabalho; quando é o próximo feriado?; tenho que voltar a fazer exercício; não gosto de malhar em casa; quero descansar; não aguento mais ficar parado, vou levar o Chaplin pra dar uma volta; cadê esse bicho, será que já tá rasgando o sofá de novo?

Esse texto me cutuca, me atormenta. Com ele, reencontro a frase do Fabrício Carpinejar: “um dia, quando adulto, é preciso voltar na infância e cuidar da criança que um dia você foi”. Acho que é para onde estamos indo, algum lugar lá de trás, para cuidar de mim mesmo. Ele segue desritmado, desafinado, não tem métrica nem nota. Sei lá, sei lá, a vida é uma grande ilusão.

Esse texto não se aquieta e sussurra um Chico Buarque: “Pede perdão/ Pela duração dessa temporada/ Mas não diga nada que me viu chorando/ E pros da pesada diz que eu vou levando/ Vê como é que anda aquela vida à toa/ E se puder me manda uma notícia boa”.

Esse texto me liga aos amigos, à família, rema ao inesperado, viajamos em descobertas antigas. Ele me recorda que não podemos caber em uma caixa que não foi feita para nós. Que, aliás, nem fomos feitos para viver em caixas. Ele mostra que meu rio de angústias desagua em um mar de saudade. E que o momento é para navegar, mesmo que pela tristeza. Porque a tristeza tem sempre a esperança de não ser mais triste, não.

No embalo de Vinícius, esse texto emenda suas últimas palavras, a me confortar: “Lembra que tempo feliz, ai que saudade, Ipanema era só felicidade/ Era como se o amor doesse em paz/ Nossa famosa garota nem sabia/ A que ponto a cidade turvaria este Rio de amor que se perdeu/ Mesmo a tristeza da gente era mais bela e além disso se via da janela/ Um cantinho de céu e o Redentor/ É, meu amigo, só resta uma certeza, é preciso acabar com essa tristeza/ É preciso inventar de novo o amor”.

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