A pandemia que derreteu o calendário

Que dia da semana é hoje? Demorei até me lembrar que estou numa sexta feira. Ué, mas ontem não foi terça?

A sensação é que o calendário, aquela sequência bem organizada e repetida de dias que começam oficialmente no domingo e vão até o sábado, foi derretida. E depois, é foi despejada em cadinhos todos iguais e do mesmo tamanho, como aqueles onde se colocam metais fundidos. Ou melhor, como as forminhas que a gente usa para fazer gelo.

A comparação com a forminha é melhor ainda, porque quando ela retirada do freezer sempre falta algum, ou pior alguns cubos. Sempre menos do que precisamos, porque o usuário anterior não completou com água.

É exatamente assim que tenho me sentido, dia após dia, durante esse longo isolamento. É verdade que sou um privilegiado! Posso fazer tudo que preciso, trabalhar, fazer esporte, ler, escrever, ver Netflix, aqui dentro de casa. O que, infelizmente, não vale para quem continuou sua rotina profissional nas ruas, fábricas, lojas, campo.

Minha semana é uma forminha gelo, todos os cubinhos iguais. Trabalho, esporte, leitura, Netflix, conversas…se encaixam direitinho em qualquer um dos 7 quadradinhos da forminha. Por exemplo, hoje. Que dia é mesmo? Sexta. Não é mais, porque interrompi o que estava escrevendo ontem à noite. Logo, é sábado, mas até que poderia ser quarta-feira.

O calendário derretido poderia ter apenas três dias: hoje, amanhã e ontem. Com algum esforço, por causa de compromissos profissionais, admito até um depois de amanhã.

A lembrança das folhinhas Pombo, que não têm registro para millennials, é algo tão remoto quando inútil hoje. Basta o ciclo do Sol como um metrônomo.

Nem tentem comparar minha forminha com o filme “O feitiço do tempo” (“Groundhog day”). A diferença é total. No filme, tudo se repete, dia após dia, sempre do mesmo jeito, com absoluta previsibilidade. Na minha forminha, os dias se parecem como duas pedras de gelo, mas nunca acontecem as mesmas coisas dentro de

cada pedra, na mesma sequência todos os dias. As combinações de todas as atividades são diferentes, mas os elementos são os mesmos. É algo me faz lembrar do Bolero (Ravel) com suas múltiplas repetições de um mesmo segmento musical, mas sempre diferentes umas das outras pela participação de vários instrumentos que se completam e se misturam.

Fico imaginando que, daqui a pouco, não sabemos bem quando, o gelo vai derreter. Voltaremos ao novo antigo normal. Portanto, não joguem foram seus calendários, folhinhas, as agendas digitais e nem as da Pirelli, que não são mais as mesmas.

Voltaremos a viver fora das forminhas de gelo, mas já sabemos que outros tipos de cadinho vão organizar e amarrar nossas rotinas.

Menos lives e mais alive. Vamos conversar com os do andar de baixo nos elevadores, em salas de reunião, nas academias em esteiras vizinhas, nos saguões de cinema, no raio X de Congonhas, em semáforos com o vidro fechado. Será que os motoqueiros, nossos grandes aliados neste confinamento, vão ser outra vez nossos competidores nas ruas? Sei lá.

Não sei vocês, mas eu vou viver a nostalgia das forminhas. Pena que com elas a economia não se movimenta.

Se me lembro bem, hoje é sábado. Ontem, portanto, quando comecei a escrever foi sexta. E então, havia me lembrado da bobagem do TGIF, neste tempo das forminhas. Resolvi rebatizá-lo de TGIH: Thank God I’m Healthy. Afinal, é disso que vamos precisar quando o gelo derreter.

Bom domingo a todos. É amanhã, né?

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