Como surgiu o “pas” do francês

Ao aprender idiomas estrangeiros, muitas vezes as negações podem causar problemas.

Eu me lembro de, bem pequeno, ouvir I don’t know. Logo aprendi que significava “eu não sei”. Sabendo que I era “eu”, concluí que don’t era “sei”. Afinal, know, pronunciado “nôu”, havia de ser “não”.

Quando comecei no francês foi pior ainda. Por que razão era obrigatório usar duas palavras, ne e pas, para negar apenas uma afirmação? Por que dizer je ne sais pas, se je ne sais é completamente inteligível e significa exatamente a mesma coisa?

Pior ainda foi quando descobri que, no discurso informal, o ne muitas vezes é omitido. A palavra que realmente nega grande parte das afirmações do francês é pas. Curiosamente, pas não tem nada a ver com as outras negações europeias: não, non, no, nicht etc. De onde teria surgido essa palavra?

Antigamente, no Francês Antigo, jeo ne dis  significava “eu não digo”. A palavra negativa era ne, equivalente ao nosso não, ao non italiano, ao no espanhol etc. Em algum momento, os francófonos passaram a adicionar substantivos ao final dessas frases negativas, para dar ênfase ou por simples questão de estilo. Daí surgiram construções como:

Je ne vois point (=Eu não vejo [nem um] ponto).

Tu ne buvais goutte (=Você não bebia [nem uma] gota).

Elle ne mange mie (=Ela não come [nem uma] migalha).

E, finalmente:

Je ne marche pas (=Eu não ando [nem um] passo).

A maioria dessas construções morreu. Mas o pas pegou e hoje é usado com toda sorte de verbo no francês, como uma verdadeira partícula negativa.

Assim, je ne sais pas seria, literalmente, “eu não sei passo”; je ne mange pas, “eu não como passo”. Hoje em dia, claro, o pas não tem mais esse sentido. É simplesmente um “não” francês.

Esse malabarismo linguístico não é exclusividade francesa. O próprio inglês do I don’t know também passou por isso.

Antanho, em Inglês Antigo, “eu não sei” era ic ne wit. Normal: sujeito, partícula negativa e verbo, igual em português, espanhol (yo no sé), italiano (io non so) etc. Em algum momento, os falantes ingleses, assim como os franceses, acostumaram-se a colocar outras palavras no final da frase para reforçar a negação: ic ne wit tornava-se ic ne wit nawiht, “eu não sei nada”.

Nawiht era uma contração do próprio ne (“não”) com a (“qualquer”) com wiht (“coisa”). Deu origem ao moderno nothing e depois ao próprio not.

Com o tempo, o ne foi deixado cada vez mais de lado, assim como aconteceu no francês, e ic wit nawiht, ou seja, I know not, tornou-se popular. Quase igual o je sais pas francês.

A negação só voltou para antes do verbo principal, já na forma modificada not, com a adoção do verbo do auxiliar. Isso completou um “ciclo da negação” no inglês: o marcador de negação era pré-verbal, passou a ser pré- e pós-verbal, depois apenas pós-verbal e, reiniciando o ciclo, voltou a ser pré-verbal:

Ic ne wit > Ic ne wit nawiht > Ic wit nawiht > I do not know.

O nome disso é ciclo de Jespersen. Aconteceu o mesmo com o francês, mais recentemente:

Jeo ne sais > Je ne sais pas > Je sais pas.

Podemos ver essas mudanças até mesmo no português:

Eu não sei > Eu não sei, não > (Eu) sei não.

O curioso do caso francês é que, originalmente, pas não era uma palavra negativa, ao contrário de nada e nothing, que tem a ver com não e no. E a construção se tornou tão forte que essa palavra nada-a-ver, “passo”, virou um advérbio de negação oficial na língua francesa.

Imagina que elegante se falássemos “eu sei passo” para afirmar nossa ignorância.

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