Nossas escolhas já foram feitas

Tudo o que acontece tem uma causa e tudo o que acontece é consequência necessária e inevitável de tudo o que aconteceu antes.

Imagine que há bilhões e bilhões de anos toda a matéria e energia do universo estivesse confinada em um minúsculo e imensamente denso ponto chamado singularidade. No momento seguinte, essa matéria e energia começa a se expandir a uma velocidade impensável e a matéria se dilui em prótons e elétrons, que formam átomos, que formam moléculas, que formam nuvens, que formam galáxias.

É o Big Bang. O início do universo, ou pelo menos o mais próximo disso a que pudemos chegar.

No instante em que a singularidade começa sua expansão, são criadas todas as leis naturais: a constante gravitacional, as cargas elementares, a velocidade da luz, as leis da termodinâmica etc. Tudo o que acontece desde o Big Bang é governado por essas leis naturais imutáveis.

Olhando de fora, a expansão parece um completo caos: as fronteiras do universo se expandem por todos os lados, átomos de hidrogênio começam a se juntar, átomos mais pesados surgem, nuvens de poeira começam a se condensar, e tudo parece acontecer de forma maravilhosamente aleatória.

Porém, não nos esqueçamos: a velocidade de cada próton, a trajetória de cada elétron e o lugar específico de cada colisão seguem as leis naturais inquebráveis determinadas pelo Big Bang. Parece caótico, mas tudo o que está acontecendo é simples consequência das leis naturais.

E as leis naturais não permitem exceção. Tudo o que acontece tem uma causa e tudo o que acontece é consequência necessária e inevitável de tudo o que aconteceu antes.

Naquele momento, no Big Bang, com a criação das leis naturais que regem tudo, o destino do universo foi selado. De lá para cá, tudo aconteceu da única forma que poderia ter acontecido, seguindo as leis naturais.

Não existe acaso. Não existe sorte.

Isso se chama determinismo.

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Posto de forma geral, determinismo é a ideia de que todo evento é consequência necessária de eventos passados. O determinismo se baseia na noção de que tudo pode ser explicado, ou seja, de que tudo tem uma razão suficiente.

A princípio é contraintuitivo pensar que o determinismo é real, porque ele tem algumas consequências bem bizarras.

Imagine um ser superinteligente, algo como um deus, capaz de conhecer cada mínimo detalhe do mundo: a localização, a velocidade, a direção e a energia de cada partícula subatômica no universo inteiro. Se a essa superinteligência fosse dado o conhecimento de como o universo era em 1739, ela seria capaz de calcular a trajetória de cada partícula subatômica a partir daquele momento, seguindo as incoercíveis leis naturais, e chegaria à conclusão de que neste momento eu estaria escrevendo este texto, e que você o estaria lendo.

Mais do que isso, se a ela fosse dado conhecer o universo um segundo após o Big Bang, ela teria previsto a formação das galáxias, das estrelas, dos planetas, dos dinossauros e dos humanos.

Pois, se tudo segue leis naturais inquebráveis, tudo o que acontece acontece segundo essas leis e acontece da única forma que poderia acontecer. Tudo que se passa no universo é consequência necessária do que aconteceu antes e causa suficiente para o que acontecerá depois.

Desde o início do universo estava previsto que este texto seria escrito por mim e lido por você.

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A primeira vez que eu tive a ideia de que tudo acontece por uma razão foi na faculdade de medicina. Não quero dizer no sentido teleológico, de que tudo que acontece tem um objetivo metafísico, uma razão divina para acontecer, mas que tudo que acontece tem uma causa.

Se grande porcentagem dos fumantes desenvolve câncer de pulmão, mas alguns deles não, há uma razão para isso. E muitas vezes essa razão não é aparente a princípio: é preciso ir a nível celular, genético, molecular. Às vezes nem conseguimos descobrir qual é essa causa, mas ela está lá: se um paciente desenvolve câncer de pulmão e outro não, algo aconteceu de diferente entre os dois.

Antes de uma explosão, é impossível que saibamos onde certo pedaço de escombro vai cair ou a que altura certa porção de fuligem vai chegar. Porém, essas medidas já estão determinadas pelas leis da natureza. No momento da explosão, um sussurro, um sopro, um bater de asa de pássaro pode mudar esses valores, e por isso é impossível que nós, humanos, calculemo-nos. Mas tudo irá acontecer da forma que deve acontecer, sofrendo a ação de todas essas variáveis e, no fim, o escombro terá caído no único lugar em que ele poderia ter caído, sofrendo a influência da força da explosão, da resistência da estrutura, da umidade do ar, do vento, do relevo do terreno, do bater de asa de pássaro e do sussurro; tudo contribuirá para que o pedaço de escombro, seguindo as leis naturais, caia exatamente onde, naquelas condições específicas, ele deveria cair.

Semelhantemente, é impossível prever quem terá câncer de pulmão. Mesmo que os fumantes tenham chances muito maiores de desenvolver a neoplasia, alguns terão sorte e outros não. Assim como o lugar em que determinado pedaço de escombro vai cair depois de uma explosão, os fatores que levam alguém a desenvolver câncer são numerosos demais: uma complexa interação de citocinas, quimiocinas, agressores ambientais, genes reguladores, receptores celulares etc. Assim, é impossível prever de antemão quem certamente terá câncer e quem não terá: limitamo-nos a probabilidades (o que já é muito útil na medicina). Contudo, tenhamos certeza, aqueles que o tiverem o terão por alguma razão; talvez uma única molécula, que chegou algumas frações de segundo atrasada, e assim foi incapaz de evitar uma única alteração do DNA.

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Quando consideramos matéria inanimada como estrelas ou escombros, ou mesmo a matéria orgânica impessoal de um pulmão, até que não é tão difícil tragar o determinismo. O problema é pensarmos que nosso cérebro está sujeito às mesmas leis naturais que todo o resto do universo e que, portanto, tudo que sentimos, pensamos e fazemos não é produto de nossa vontade individual, mas resultado de moléculas cegas seguindo caminhos previstos há bilhões de anos pelas leis universais.

De fato, o determinismo apresenta uma “ameaça” grave à noção de livre arbítrio e, por conseguinte, de responsabilidade moral. Afinal, se todas as minhas ações são consequência necessária de eventos que aconteceram muito antes de eu nascer, como se pode dizer que eu sou responsável por minhas ações, ou mesmo que tais ações são minhas?

Pois, se o determinismo é real, não há escolha: cada único pensamento, sentimento e comportamento humano é predeterminado por tudo que aconteceu antes. Não há, portanto, um momento em que duas ou mais possibilidades de futuro se abrem como uma forquilha para que escolhamos qual delas seguir. O caminho é reto e único.

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Nós somos razoavelmente íntimos da ideia de que forças externas a nós influenciam em nosso comportamento. O homicídio cometido sob domínio de violenta emoção, por exemplo, tem sua pena minorada. Também já sabemos que a genética tem influência sobre vários aspectos de nossa vida mental, incluindo os níveis de ansiedade e a tendência a adotar comportamentos agressivos. Programas de ação afirmativa são criados na tentativa de equiparar pessoas com passados sociais discrepantes, segundo a tese de que isso influencia sua performance em testes de conhecimento. Tudo isso é exemplo de como sabemos que nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos são influenciados por coisas externas a nós.

Ainda assim, a maioria de nós guarda a convicção de que boa parte do nosso comportamento cabe a nós mesmos e que, independentemente da emoção, da genética e das condições sociais, no fim nós podemos escolher: perseverar ou desistir, arriscar ou se omitir, ceder ou resistir às tentações.

Quando pensamos, por exemplo, no caso do livre arbítrio de um drogadito que deseja ficar abstêmio, mas acaba cedendo a seu vício, constantemente distinguimos dois desejos diferentes. É certo que, de alguma forma, o drogadito quer utilizar a droga: ele não foi obrigado por nenhuma força externa. Mas ao mesmo tempo ele não quer, pois sabe que em longo prazo o uso da droga pode ser devastador.

Ao impulso ou à compulsão imediata de utilizar a droga podemos dar o nome desejo de primeira ordem. Neurobiologicamente (de forma simplificada), esses impulsos partem do núcleo estriado, no diencéfalo. Ao desejo racional, dirigido ao futuro, calculado em prós e contras podemos dar o nome desejo de segunda ordem. Neurobiologicamente, essa racionalização vem de uma parte mais “alta” do cérebro, o córtex pré-frontal.

É comum que associemos o livre arbítrio à capacidade de resistir ao desejo irracional de primeira ordem em nome do desejo “superior” de segunda ordem. Ceder aos impulsos diencefálicos é associado a fraqueza de caráter, enquanto resistir a eles em nome de escolhas conscientes é associado a moralidade, à capacidade de escolher o “bom” e o “certo”, a despeito dos impulsos carnais de primeira ordem.

De fato, os impulsos hedonistas do sistema mesolímbico são grosseiros, animalescos, nada parecidos com a capacidade deliberativa que quase define a espécie humana. Identificamo-nos muito mais com nossas aspirações e sonhos neocorticais do que com as vontades tirânicas do núcleo estriado. Assim, ligamos o livre arbítrio, que é tão humano e pessoal, à satisfação de vontades “superiores” e não de impulsos reptilianos.

A identificação do livre arbítrio com essa capacidade de resistir a desejos de primeira ordem em nome de desejos de segunda ordem vem também muito em decorrência de nossa crença de que não controlamos aqueles. Com efeito, os impulsos estriatais não são conscientes: eles surgem simplesmente como desejos, como verdadeiros impulsos, impensados, irrefletidos. Diferentemente, os desejos neocorticais são contemplados, medidos, avaliados. Escolhidos.

Em nosso senso-comum, identificamos os desejos de primeira ordem como tiranos, que nos impelem a recompensas hedônicas de curto prazo e que surgem independentemente (e até separadamente) de nosso próprio eu. Por outro lado, identificamos os desejos de segunda ordem como o possível triunfo do eu sobre essas vontades tirânicas; eles têm forma, têm justificativa, não são simplesmente impulsos. Os desejos de segunda ordem, contemplados e refletidos, parecem estar sob nosso controle.

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A questão que surge é: por que algumas pessoas superam os impulsos baixos do diencéfalo e outras não? Melhor ainda, por que em algumas situações nós resistimos aos desejos de primeira ordem e em outras não?

Às vezes estamos de bom humor, e isso pode fazer com que sejamos mais dirigidos a objetivos, o que facilita que tomemos decisões menos impulsivas; outras vezes, o bom humor nos deixa mais relaxados, menos hesitantes, o que facilita que tomemos decisões mais impulsivas. O álcool, através de sua ação depressora do SNC, diminui a inibição do córtex pré-frontal sobre o diencéfalo, o que nos predispõe a comportamentos mais impulsivos. E por aí vai.

Não é difícil concluir que os desejos de primeira ordem podem ser mais fortes em algumas pessoas do que em outras. Além disso, é certo pensar que algumas pessoas têm, naturalmente, meios neurais mais efetivos para controlar esses impulsos. Seja pelos genes, pelo estado mental no momento, ou pelo efeito de alguma substância, a capacidade neocortical de resistir aos impulsos reptilianos do diencéfalo é muito influenciada por fatores externos e incontroláveis por nós.

Da mesma forma, nossa motivação, que tem muito a ver com a renúncia a prazeres imediatos em nome de objetivos tardios, não é algo sobre o que temos controle consciente. Algumas pessoas são naturalmente mais motivadas do que outras. Podemos, é claro, motivar a nós mesmos: buscar vídeos inspiradores, visualizar mentalmente o futuro glorioso, convencer-nos de que o prazer imediato não vale a pena. Mas mesmo isso terá efeitos restritos em algumas pessoas e efeitos importantes em outras; e isso não está sob o controle delas.

Aliás, por que algumas pessoas escolhem assistir aos vídeos inspiradores e outras não? Se as duas estão desmotivadas, por que não as duas buscam o vídeo inspirador?

Por que o pensamento de assistir ao vídeo vem à mente de um sujeito, mas não de outro?

Como Nietzsche afirma em Além do bem e do mal, “um pensamento ocorre apenas quando quer e não quando ‘eu’ quero”. Mesmo que se pense “vou pensar sobre isto”, o próprio pensamento “vou pensar sobre isto” surgiu espontaneamente, sem determinação do sujeito pensante.

Somos apenas veículos para os pensamentos. Nós não os controlamos. Nem os impulsos baixos do diencéfalo, nem as racionalizações complexas do neocórtex.

Por isso, podemos, sim, fazer o que queremos. Mas não podemos querer o que queremos.

Se não controlamos nossos impulsos reptilianos diencefálicos, tampouco controlamos nossas racionalizações complexas neocorticais.

Nossos desejos, tanto de primeira como também de segunda ordem, estão fora de nosso controle.

Nossos pensamentos e sentimentos mais complexos, assim como o câncer de pulmão, os escombros de uma explosão e as estrelas, são governados cegamente pelas mesmas leis naturais universais incoercíveis.

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