Gentrification Blues

Gentry – designação para nobreza, aristocracia, classes altas. Gentrificação, processo de enobrecimento de um lugar pela chegada de classes superiores. Esse processo não se dá sem dor, como bem transmite a canção Gentrification Blues.

É uma música da cantora Terrie Odabi de Oakland na Califórnia fala sobre o processo de transformação que sua cidade, vizinha ao Vale do Silício, vem passando.

It’s here I go to church/ It’s here I like to party/ I ain’t let nobody run me out of my town

Gentry – designação para nobreza, aristocracia, classes altas. Gentrificação, processo de enobrecimento de um lugar pela chegada de classes superiores. Esse processo não se dá sem dor, como bem transmite a canção Gentrification Blues.

A Gentrificação em si tem diversos começos, podendo ser fruto de um transbordo de pessoas de alguma região próxima que encareceu, ser gerada por transformações no próprio local, fruto de alguma intervenção, ou mesmo o processo contínuo de transferência de funções subalternas para regiões periféricas na medida em que o espaço urbano é disputado.

Mas sua essência é a disputa territorial entre classes sociais e pode retroagir até a Revolução Agrícola, que deslocou massas trabalhadoras do campo para as cidades, assim abastecendo as manufaturas no início da Revolução Industrial. A mesma dinâmica veio a se repetir no Brasil em meados do século XX, quando intensificou-se a migração do campo para as cidades brasileiras, bem descrita na letra Peão, música de Almir Sater: “Diga você me conhece/ Eu já fui boiadeiro/ Conheço essas trilhas/ Quilômetro, milhas/ Que vem e que vão/ Pelo alto sertão/ Que agora se chama/ Não mais de sertão/ Mas de terra vendida/ Civilização…/ Ventos que arrombam janelas/ E arrancam porteiras…/ Os caminhos mudam com o tempo“.

O deslocamento de populações do campo para as cidades fez emergir a estrutura da cidade industrial, que tinha as indústrias em seu centro. Mais adiante novas centralidades foram desenvolvidas para acomodar os centros administrativos, enquanto os antigos bairros industriais foram ocupados pelas classes mais baixas. Os mesmos bairros industriais e seus galpões que décadas mais tarde, quando a produção foi deslocada para as periferias, seriam transformados em moradias, convertidos nos icônicos lofts do Soho em Nova York ou em condomínios e Shopping Centers em São Paulo.

Nas cidades brasileiras o desenvolvimento sempre foi direcionado para as necessidades produtivas, seja dos centros administrativos, seja da própria produção nas indústrias, negligenciando dimensões como transporte, moradia e lazer, que por fim levou a uma super valorização dos espaços que contam com elas.

Ainda no campo musical, a letra de Eu Só Quero É Ser Feliz de Cidinho e Doca fala de “Poder me orgulhar/ Ter a consciência que o pobre tem seu lugar“.

Na prática os mais pobres só têm seu lugar enquanto classes mais altas assim permitem. Quando tais lugares ficam atrativos, inicia-se o processo de Gentrificação e a gradual substituição de sua população original. Gradual porque uma região mais pobre não será imediatamente interessante para classes mais altas, ela antes passará por uma assimilação por outros grupos mais inclusivos, como os descritos por Antonio Prata na divertida crônica BAR RUIM É LINDO, BICHO!.

Substitua Bar por Bairro e você terá uma descrição fiel do processo de assimilação de uma região por classes mais altas, a gênese da Gentrificação.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e nesse ponto a gente já se sente incomodado e quando chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual, nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e universitários, a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó.

Esse processo não é isolado, ainda que fique mais evidente em algumas regiões, deriva da continuada migração de populações para as cidades grandes, bem como da própria incapacidade que as cidades têm de criar espaços para estes novos públicos. Começa então uma disputa de bastidores pela identidade de um local.

A região do East Chelsea em Nova York vem representando uma nova vertente desse movimento, ainda mais intensa e agressiva, que coloca frente a frente, nas mesmas calçadas, populações originais de classes baixas e multimilionários. O filme Divisão de Classe de Marc Levin é contundente ao mostrar a realidade de jovens pobres que residem em apartamentos populares que ficam diante da sede da escola Avenues World School e os alunos desta escola que é voltada para as classes mais altas de Manhattan. Esse contraste tão radical, a imensa divisão que a rua representa, a dura realidade de se ver desalojado de seu lugar de referência são os fios condutores do documentário.

Class Divide- Extended Trailer (HBO Documentary Films)

Entende-se que a Gentrificação é um processo em andamento quando os residentes originais perdem a capacidade de pagar pela moradia ou mesmo lidar com os custos de vida numa região enobrecida. Seja pela valorizações os imóveis, reajustes nos aluguéis ou mudança no perfil dos varejos, a população original passa a se sentir cada vez menos como autêntica residente daquela região. Ainda que o processo econômico seja conhecido, o processo de desterritorialização, como proposto na obra de Gilles Deleuze e Felix Guattari ainda é pouco explorado.

Nosso sotaque, nosso jeito de andar, vestir, músicas favoritas, comidas preferidas e tanto mais derivam do lugar em que crescemos, do lugar que contém essas identidades que nos foram transmitidas. Perder este lugar, sobretudo vê-lo desaparecer neste processo, é um episódio dramático de homogeneização pelas leis de mercado. Restando àqueles que foram Gentrificados deslocar-se para novos lugares que dificilmente terão as identidades do origina, ou aderir aos novos hábitos, como no antigo ditado “em Roma faça como os romanos“.

São Paulo vive um dilema desta ordem, a exemplo do que ocorreu em East Chelsea e o bem sucedido High Line Park, linha férrea convertida em parque linear com linda perspectiva para a cidade, o Minhocão também tem uma proposta de transformação.

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https://www.archdaily.com.br/br/928184/prefeitura-de-sao-paulo-suspende-planos-de-construir-o-parque-minhocao

O High Line Park é considerado o catalisador da Hiper Gentrificação que ocorreu em East Chelsea e esta mesma ameaça paira sobre os projetos de revitalização do Centro de São Paulo. Como preservar os direitos das populações locais às identidades que os constituem, à moradia e ainda assim levar adiante o projeto de parque?

O novo Plano Diretor da cidade de São Paulo cria regras de proteção para classes menos favorecidas, as Zonas Especiais de Interesse Social. Mas, a história de luta dos moradores das regiões ribeirinhas do Centro de Porto Alegre mostra por onde é possível e o quanto é necessário ir além dos programas governamentais para preservar as identidades de um lugar e das pessoas que compõe o mosaico de nossa sociedade:

O Brasil e o Mundo estão num processo de Urbanização, com uma crescente proporção de suas populações migrando para Cidades, 70% até 2050 segundo a ONU. A Gentrificação não é um processo novo na história da humanidade, é o nome da luta pela dignidade, pela identidade, pelo direito de existir, pelo direto à Cidade, como postulado por David Harvey.

Podemos esperar mais e mais problemáticas ligadas aos papéis exercidos pelos espaços e ao poder de escolha que as classes mais altas reservam para si em detrimento das demais. Entendendo que estamos diante de uma era urbana para a humanidade e que até aqui vivemos em meio ao consumismo de bens, serviços, símbolos de status, precisamos nos preparar para o consumo de lugares, que obrigatoriamente tem que ser negados a alguém para que outros dêem a eles o uso de sua preferência.

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