Quem se isola faz ao vivo

Com muito improviso, pouca grana e nenhuma promessa de que o modelo de lives possa um dia ser lucrativo, artistas e suas músicas cumpriram seu mais nobre papel na sociedade: levar um pouco de esperança e alegria a uma humanidade aflita.

3 de março de 2020. Faltava cerca de uma semana para o início do SXSW (famoso festival de filmes, música e negócios em Austin), e minha ansiedade aumentava. Mas não, não era por causa de um vírus ainda praticamente desconhecido no Brasil, e que já ameaçava cancelar os principais eventos do ano. A ansiedade era devida ao meu DJ set, durante a famosa noite brasileira do SXSW. 

Parte do músico-frustrado-que-virou-produtor-barra-artista sonhava há tempos com a volta pros palcos, ainda mais num festival internacional e tão importante para a indústria. E nessa mistura de frustração com ansiedade, acabei não percebendo o que o cancelamento do SXSW (e de todos os festivais subsequentes) significaria para toda uma classe de profissionais, pelos quais sempre tive meu profundo respeito e admiração.

A ficha caiu, a pandemia começou a se alastrar pelo planeta, e eventos, festas e casas de show foram sendo fechados. Não bastasse a confusão geral das primeiras semanas, foi com similar tristeza que vi meus artistas favoritos (alguns dos quais já tive ou tenho o privilégio de produzir) cancelando turnês, shows e aparições. Lembrei de uma empresa que visitei em Los Angeles havia apenas 2 meses.

Chamada Wave (wavexr.com), a empresa nasceu com o objetivo de levar o artista e seu show para o ambiente virtual, entregando ao espectador uma experiência imersiva e interativa, incluindo aí tudo o que você já sentiu quando foi a um show – as pessoas ao seu lado, a iluminação, e a performance do seu artista favorito, tudo do conforto do seu lar, sem as “chateações” do mundo real (alguém aí já tentou sair do Morumbi de carro pós show do U2?).

Pré-pandemia, a Wave já havia produzido experiências virtuais de grandes nomes da música eletrônica, como Galantis e Jauz (que levou ao seu mundo virtual mais de 85.000 pessoas). Pós Covid19, a empresa entrou com tudo no cenário da música Pop e Hip Hop – A Wave produziu um show do The Weeknd para o Tik Tok, uma experiência que reuniu 275.000 visualizações simultâneas em seu pico, e mais de 2 milhões de visualizações de usuários únicos durante a live. Também produziu a aclamada performance do avatar de Travis Scott dentro do Fortnite.

O que parecia coisa do futuro, virou presente em questão de semanas – mesmo sem a tecnologia e sem a expertise que a Wave vem construindo ao longo dos últimos anos, os artistas foram obrigados a se jogar no mundo das lives e livestreams, levando show e arte para seu público através do Instagram, Twitch, Tiktok, e plataformas de shows como Stageit e Looped. Com muito improviso, pouca grana e nenhuma promessa de que o modelo de lives possa um dia ser lucrativo para a indústria como um todo, artistas e suas músicas mais uma vez, cumpriram seu mais nobre papel na sociedade: levar um pouco de esperança e alegria a uma humanidade aflita com uma das mais graves crises da nossa história.

Um desses artistas é o meu amigo Zeeba, com quem já toquei e produzi por tantas vezes ao longo dos últimos anos. A agenda de shows foi trocada por uma série de lives e shows com o devido distanciamento (leia-se: o drive-in ressuscitou). Além dos shows em suas mídias sociais, parcerias ajudaram: ações com marcas como Audi, Banco G6 e Amazon, além da participação em shows patrocinados, que ajudaram a manter sua equipe técnica . Um de seus shows mais memoráveis até agora? Quando desceu nas quadras do condomínio onde mora, levando seu violão, microfone e amplificador, e se apresentou para os isolados nas janelas de cerca de 8 prédios. É possível que mais de mil reclusos tenham assistido a “live”. 

Se por um lado os artistas ainda estão longe de saber como viver sem shows presenciais, por outro a pandemia acelerou um processo que parece se tornar irreversível. Startups como Wave e Jadu (plataforma de criação de avatares para artistas e celebridades) nos mostram um futuro não tão distante, onde o artista não precisa estar fisicamente presente para levar algum tipo de interação e emoção ao seu público (uma emoção que ainda estamos aprendendo a lidar, zoom que o diga). Se isso soar frio ou distante, é importante lembrar que o artista já é uma espécie de avatar ou satélite de sua arte até mesmo nas mídias sociais que caíram no gosto do público. O Tiktok demonstra isso de maneira bem clara: a ferramenta, responsável por viralizar e dar status de hit a algumas das maiores músicas dos últimos dois ou três anos, paradoxalmente substituiu a persona do artista por um sem-número de protagonistas, que criam seu conteúdo a partir de músicas, muitas vezes (ainda) desconhecidas. É isso mesmo, o Tiktok anda determinando como a música será usada, não o artista.

Pensávamos que as lives e concertos virtuais eram um “band-aid” prático para a pandemia, mas talvez estejamos no começo de algo diferente. Não podemos mais voltar atrás, e esse é apenas o começo de uma década que parece ser bastante interessante. A pergunta que fica é: e a cultura da música ao vivo? Estaria morrendo?

No excelente filme argentino “O Cidadão Ilustre”, a personagem principal comenta sobre uma tribo nômade africana que não possuía em seu vocabulário a palavra “liberdade”. Porque eram livres. E que o mesmo deveria acontecer em nossa sociedade no que tange a palavra “cultura”, uma vez que não é necessário protegê-la, pois é algo indestrutível e parte intrínseca de todos nós. Dessa maneira, vou me permitir terminar esse artigo sem a necessidade de consolações como “oremos para que a arte, a música, o ao vivo sobreviva”. Não é necessário. Ainda que adaptadas a nossa época, a disseminação e imersão presencial nas artes e na música sempre terá seu valor.   






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