Quarentena Criativa – Segunda Parte

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Capítulo 4

Physical Thinking

Na década de 1960, Eric Kandel começou a realizar estudos com a lesma-do-mar, provocando o bullying de seus amigos da comunidade científica. Nos anos 2000, ele foi agraciado com o Nobel de Fisiologia e Medicina por grandes descobertas relacionadas ao cérebro humano. Kandel foi um dos primeiros a provar que o nosso cérebro muda fisicamente, baseado em experiências, aprendizados e necessidades (como o crescimento de uma área para compensar uma lesão em outra). Portanto, não é de se surpreender que o pensamento seja influenciado fisicamente também. Por exemplo, andar de bicicleta. Ou dançar um funk na festa da firma. É algo que aprendemos fisicamente, não em livros ou reflexões. ATALHO: vou falar neste vídeo mais pra frente, mas caso você esteja com pressa, coloco um atalho aqui pra tentar conquistar o seu engajamento.

Thinkering

Uma crítica que ouvi o guru da criatividade, Charles Watson, fazer aos brasileiros é que, se pudermos, não colocamos a mão na massa. A classe média prefere contratar alguém que o faça. Já nos EUA ou na Europa, as pessoas têm mais o hábito de construir coisas, tocar no mundo. Na história da inovação, muitas invenções tecnológicas têm origem em engenhocas construídas em garagens por pessoas comuns e curiosas. Tem um termo legal pra ilustrar isso: thinkering. Leiam uma definição básica ou uma mais cabeça (achei agora no Google).

Peças de lego

Conexões neurais

Quando temos estímulos associados, como memórias visuais, musculares ou auditivas, criamos conexões que ficam mais fortes à medida que são exercitadas. Experimentem ouvir esta música e depois ver este vídeo. A percepção é a mesma? Outro exemplo clássico são aquelas experiências em que um evento desencadeia outro, que desencadeia outro. Isso sempre nos provoca a sensação de “meu Deus, como eles fizeram isso?”. Esse trabalho ficou célebre e não foi feito por físicos ou químicos, mas por artistas que colocaram a mão – aliás, isso inspirou publicitários muitas vezes.

Pop talks

E pra ficar mais divertido, venham comigo para o mundo do entretenimento. Um dos vídeos mais incríveis que vi sobre o assunto é do Bobby McFerrin (don’t worry, é o mesmo lá de cima). Ele explica a escala pentatônica de uma forma física para um público de leigos em música e todo mundo entende em poucos segundos. Aliás, mostrei pro meu filho Bento, na época com um ano e pouco, e ele não só entendeu, como virou fã do Bobby, que aqui em casa é conhecido como “titio música”. Outro exemplo vem do Red Bull Air Race, aquelas corridas acrobáticas aéreas malucas que acontecem por aí. Os pilotos têm que fazer manobras muito rápidas em um circuito e, para treinar, eles repetem o movimento várias vezes a pé, fora do avião, como forma de mentalizar a pista e os obstáculos. Tem vários outros exemplos, como bailarinas, atletas de hipismo etc. 
Depois desse monte de informação despejada, sugiro uma caminhada para pensar e conectar alguns pontos que tenho certeza que estão pipocando no seu cérebro agora.

Capítulo 5

No livro “De onde vem as boas ideias”, Steven Johnson organizou uma série de conceitos relacionados à busca pela criatividade. Vou falar sobre alguns deles que martelam na minha cabeça até hoje.

O possível adjacente

Imaginem uma sala com quatro portas que levam a outras quatro salas com mais quatro portas, e assim sucessivamente. Quando estamos na primeira sala, o possível adjacente são as próximas quatro salas. A cada porta aberta, o possível adjacente se amplia. 

Na história da inovação, não conseguimos ir direto até uma sala muito distante. Seria impossível um HomoErectus ter a ideia de preparar um sushi flambado numa sexta-feira com os amigos antes da invenção do fogo. 

possível adjavente

Por isso, as ideias que fogem ao possível adjacente não costumam funcionar a curto prazo. São aquelas que chamamos de ideias à frente do seu tempo. Isso acontece muito no nosso dia a dia. Pensem em quantos projetos que envolviam vídeo fracassaram quando não tínhamos internet rápida. A conexão mobile também abriu muitas portas no possível adjacente, habilitando uma série de invenções e novos comportamentos que antes eram impensáveis.

“A história da vida e da cultura humana pode ser contada como a história da sondagem gradual, mas incessante, do possível adjacente, cada inovação abrindo novos caminhos a explorar.” – Steven Johnson

O possível adjacente também ajuda a explicar os múltiplos da história da inovação. Muitas invenções ocorreram em várias partes do mundo quase ao mesmo tempo – o avião, por exemplo. Eram épocas em que os inventores não tinham grupos de Whats ou ficavam stalkeando uns aos outros nos Stories. A explicação: condições se criaram para que tais invenções estivessem ao alcance de qualquer cientista, curioso ou sortudo. Elas haviam entrado no possível adjacente.

Exaptação

Esse termo, que parece que foi shipado, descreve um organismo que desenvolve traços para um fim específico e depois é apropriado para outra função. Então, passa a evoluir a partir dos critérios da nova função. 

As penas das aves, por exemplo. No princípio, tinham função de regulação térmica e se tornaram instrumento de voo. As penas foram adaptadas para controlar a temperatura e depois exaptadas para voar.

Outro exemplo é a internet. Originalmente desenvolvida para fins acadêmicos, forneceu a estrutura que desembocou no compartilhamento de fotos, compras on-line, trabalho remoto e textos muito longos sobre criatividade.

No nosso dia a dia, a exaptação pode ser superútil. Segundo o Steven Johnson, ambientes com diversidade de pessoas e projetos favorecem a exaptação. Serve para os cafés de Paris na década de 1920. Serve para quem trabalha com comunicação na década de 2020.

Capítulo 6

Nosso hardware está sofrendo com as atualizações de software

O cérebro humano representa cerca de 2% do nosso peso corporal, mas chega a consumir 25% da energia produzida pelo organismo, tipo um ar-condicionado de parede dos anos 1990. Justamente por isso, é programado para economizar energia sempre que possível. Algo que a indústria de ares-condicionados começou a implementar com alguma eficiência só depois dos anos 2000. 

Provavelmente foi por conta desse modo econômico do cérebro que a maioria das pessoas não percebeu que o título do cabeçalho desse post foi trocado para Quarentiva Criatena. Vocês passaram reto. Não leram novamente porque já tinham essa informação. O cérebro optou por poupar energia. 

É por essas e por outras que é tão difícil conquistar a atenção das pessoas. A era da abundância da informação gerou a era da escassez de atenção. É como a lei da oferta e da demanda. Falei um pouquinho sobre isso em um texto mais antigo intitulado “O remédio para a ansiedade das marcas”

Como chegamos até aqui

Ao olhar para na nossa história evolutiva descobriremos que, ao contrário do que é comum pensar, retemos menos conhecimento que os HomoSapiens caçadores-coletores de 50 mil anos atrás. Yuval Harari, em Sapiens (que ganhou uma excelente Graphic Novel recentemente), nos ensina que coletivamente sabemos mais. Mas, individualmente, muito menos. Cada pessoa sabe o bastante sobre a área em que atua e um número limitado de outras coisas para levar à vida. Mas não precisa saber de engenharia para andar de avião ou de agricultura para comer um burger vegano. Para isso, nos valemos do conhecimento coletivo. Já um caçador-coletor médio tinha um conhecimento mais amplo, profundo e variado do seu entorno para sobreviver à vida nômade na natureza.

Há evidências de que nosso cérebro até diminuiu de tamanho nesse período. Agora considerem o hardware humano com esse histórico e seu software sendo atualizado com a enxurrada de novos pacotes de comportamentos das últimas décadas – por exemplo: o padrão de desbloquear o celular mais de 70 vezes por dia. Imagina a bagunça nos circuitos dentro da nossa cabeça.

E a criatividade?

A criatividade é uma arma antiga e eficiente para achar formas de captar o interesse dessas pessoas confusas e sobrecarregadas de informação. Porque o cérebro delas irá decidir gastar energia com o que você está dizendo, no meio de tanta coisa acontecendo por aí? No caso da publicidade, é uma arma para evitar que elas passem reto pela mensagem das marcas. O desafio é recombinar ideias, canais e formatos para não virar paisagem. Afinal, por mais bonita que seja essa paisagem, no nosso feed sempre vai ter alguém que está em uma praia paradisíaca e logo em seguida uma receita incrível de burger vegano, e depois um filhotinho de gato tropeçando em uma almofada seguido por uma oferta arrasadora de ar-condicionado…

Texto e ilustrações toscas por Zé Pedro Paz, sócio e CCO da DZ Estúdio.

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