Quarentena Criativa: terceira (e última) parte

Se você não leu os capítulos anteriores, pode acessá-los aqui.

Capítulo 7

No texto anterior, falamos dos conceitos de possível adjacente e exaptação que o Steven Johnson elenca entre as condições relacionadas à geração de boas ideias. Para ampliar nosso repertório, decidi revisitar mais algumas inspirações do mesmo livro.

A intuição lenta

O processo de criação de grandes ideias é frequentemente descrito com expressões como eureka ou epifania. A essa altura todos os leitores da Quarentena Criativa já sabem bem que por aqui acreditamos muito mais em processo, técnica, construção de repertório, do que em gênios fazendo download de insights do cosmos. Transformar uma intuição em uma ideia não acontece em um clique – dá bastante trabalho e muitas vezes leva tempo.

O Steven Johnson chama de intuição o estágio anterior à ideia. As intuições geralmente precisam ser cultivadas e ter tempo para florescer. A teoria da seleção natural de Darwin, por exemplo, navegou pela mente dele por meses, mas ele não era capaz de pensá-la por completo. Ela amadureceu em pequenos passos. A World Wide Web também veio de uma intuição lenta de Tim Berners Lee e não de um momento Eureka.

A dica de anotar tudo no caderninho, sobre a qual falamos em um capítulo anterior, é uma forma de nutrir uma intuição até que nasça uma ideia. Mas tem um outro fator ainda mais fundamental para esse cultivo: o ambiente. Intuições precisam de condições propícias para se conectarem com outras intuições e assim formarem ideias. E aí entra o próximo tópico.

Redes líquidas

Neurônios se conectam em redes. Uma boa ideia, portanto, é uma rede. Todos os grandes momentos de inovação envolvem redes. O primeiro mecanismo de inovação na Terra, aliás, surgiu a partir de um conector (carbono) e de um ambiente randomizador que estimula novas conexões a todo momento (água). Rede. Se dermos um fast-forward, vamos chegar na criação das cidades, que como grandes redes, representaram um boom de inovação na história da humanidade. A propósito, tem outro livro bem legal do Steven Johnson que conta a história da inovação, passando pelas grandes invenções que mudaram a vida das pessoas (relógios, lentes, água potável, gravação de som, luz artificial etc.).

Bom, a parte do #Redes já está clara, mas e a parte do #Líquidas? Essa é uma analogia com os estados físicos para descrever como deve ser a natureza dessas redes. O ambiente gasoso é instável, caos puro; o ambiente sólido é estável, porém imutável; já o ambiente líquido é aquele mais promissor para explorar o possível adjacente, pois permite novas conexões e tem estabilidade suficiente para mantê-las.

Cubo de gelo, torneira, nuvem

Na ciência, a inovação não costuma ocorrer no isolamento do cientista com o microscópio (sólido), mas nas conversas e nas reuniões informais no happy hour dos cientistas (líquido). No espaço de trabalho, ambientes que estimulam a criatividade são aqueles adaptáveis, abertos, capazes de sustentar o equilíbrio entre a ordem e o caos.

O que nos leva a uma questão pra lá de contemporânea: como manter ambientes que proporcionem redes líquidas quando ainda estamos vivendo uma situação de isolamento?

Essa é uma das grandes discussões que vai moldar o rumo dos ambientes criativos após 2020.

 

Capítulo 8

Revolução cognitiva

Por volta de 100 mil anos atrás, o Homo Sapiens já tinha o cérebro do tamanho que tem hoje. Porém, ainda estava muito longe de dominar a Terra. Volta e meia, levava um certo laço dos Neandertais e tinha dificuldade de expandir seu território. Mas há mais ou menos 70 mil anos isso começou a mudar. A partir daí, os Sapiens começaram a ganhar o mundo e varreram os Neandertais e todos os outros humanos não só do Oriente Médio, como da face da Terra. Importante esclarecer: hoje “humano” é sinônimo da nossa espécie, mas o termo designa todas as outras espécies do gênero Homo, agora extintas (como o Homo Erectus e o já citado Homo Neanderthalensis).

Foi nessa mesma época, que se registrou a invenção de barcos, lâmpadas a óleo, arcos e flechas, assim como os primeiros objetos que podem ser chamados de arte. Os primeiros indícios de religião, comércio e estratificação social também datam desse período.

Yuval Harari, historiador e filósofo israelense, em seu best-seller Sapiens, chama esse momento de revolução cognitiva: o surgimento de novas formas de pensar e se comunicar.

É tudo ficção

A linguagem é um dos frutos dessa revolução. Mas qual a diferença da linguagem estabelecida por nós em relação a outras formas complexas de linguagem que existem na natureza? Harari acredita que o que há de verdadeiramente único na nossa linguagem não é a fala ou a capacidade de descrever em detalhes que um leão grande, faminto e com um topete estiloso se aproxima. O que nos torna únicos é a capacidade de transmitir informações sobre coisas que não existem. Ao falar “o leão é o espírito guardião da nossa tribo”, abre-se um novo universo para lendas, mitos, deuses, religiões, nações, dinheiro, empresas e até marcas. É tudo ficção.

Leão espírito da tribo

A ficção habilitou o Sapiens a imaginar coisas coletivamente e a cooperar de forma flexível e em grande escala. Outras espécies até cooperam, mas somente entre indivíduos próximos (chimpanzés) ou de forma rígida (abelhas). Tentem colocar 50 mil chimpanzés em um estádio de futebol ou pedir para uma colmeia de abelhas produzir colares de miçanga em vez de mel, para dar uma variada. Não funciona.

“Grande parte da nossa história gira em torno desta questão: como convencer milhões de pessoas a acreditarem em histórias específicas sobre deuses ou nações ou empresas? Mas quando isso funciona, dá aos Sapiens um poder imenso, porque possibilita que milhões de estranhos cooperem para objetivos em comum. Tente imaginar o quão difícil teria sido criar Estados ou igrejas ou sistemas jurídicos se só fôssemos capazes de falar sobre coisas que realmente existem, como rios, árvores e leões.” – Yuval Harari, em Sapiens

 

O poder das histórias

Depois de Sapiens (sobre o passado) e Homo Deus (sobre o futuro), Harari escreveu sobre o presente em 21 lições para o século 21. No novo livro, ele retoma essa questão do poder da ficção e das narrativas para explicar uma série de fenômenos bem atuais (fascismo, fake news, pós-verdade etc.). E, em muitos momentos, vejo conexões com as discussões sobre criatividade. A ficção pode ser usada para o bem ou para o mal, mas é certamente uma das grandes ferramentas que temos. E é totalmente permeada pelo pensamento criativo.

Não é à toa que storytelling virou buzzword – aliás, tem uma plataforma de Cannes chamada Storytelling at Scale, totalmente dedicada a esse assunto.

A internet potencializou ainda mais o poder de criar ficções em grande escala. A grande rede é a maior fogueira do mundo e, a cada onda, nos lembra que gostamos mesmo de contar e ouvir histórias.

Pra fechar com uma provocação: com tudo que temos nas mãos, quais novas histórias podemos contar? E de que novas formas podemos contar velhas histórias?

 

Capítulo 9

O desconforto do desconhecido 

Seres humanos gostam de saber para onde estão indo. As pressões evolutivas nos ensinaram a evitar o desconhecido. Porque dali poderia vir uma grande ameaça para nossas vidas e a perpetuação de nossos genes. Porém, é justamente no enfrentamento do incerto que ocorre a criatividade. Vou me socorrer de algumas citações do livro Criatividade S.A., escrito pelo Ed Catmull, que fundou, ao lado do John Lasseter e do Steve Jobs, o estúdio que produziu o primeiro longa-metragem de animação feito 100% por computador – a Pixar.

“Existe um ponto ideal entre o conhecido e o desconhecido, onde acontece a originalidade; o segredo está em ser capaz de demorar-se lá sem entrar em pânico.” – Ed Catmull, cofundador da Pixar, em Criatividade S.A.

E, se pensarmos bem, é uma conclusão bastante natural: se queremos criar algo novo, precisamos concordar que partimos de um ponto onde esse algo ainda não existe. E o caminho até chegar em um resultado original não é linear nem confortável.

“Conheço muitas pessoas que considero gênios criativos, e não apenas na Pixar e Disney, mas não consigo me lembrar de nenhum que possa articular exatamente qual era a visão pela qual estava lutando quando começou.” – Ed Catmull, em Criatividade S.A.

Confie no processo

E como fazer para superar esse pânico de ter que encontrar uma solução criativa para um problema? A melhor resposta que eu conheço é confiar no processo criativo. Precisamos nos preocupar menos em perseguir uma meta e mais em executar o processo. A meta é importante para nos colocar em movimento, mas muitas vezes chegamos em algo mais importante do que ela.

“Um quadro não é um resultado de uma meta do artista. É, sim, resultado de um processo” – Pablo Picasso, pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo espanhol

Quando temos um processo a seguir, devemos concentrar a nossa energia no processo em si. O Charles Watson, em suas palestras sobre criatividade, usa duas analogias pra falar disso. A primeira é a do surfe: quando pega uma onda, o surfista quer mesmo aproveitar o caminho, e não apenas chegar até a praia. A segunda é da pesca, que anotei assim: “pescar é pescar, se você faz isso bem, o peixe vem. Se você só se preocupar em pegar o peixe, você não está pescando direito”.

charge sobre pescaria

“O mais importante não é o que você procura, mas o que você acha no caminho.” – Pablo Picasso

Minha humilde contribuição

Na DZ, nós criamos, em 2014, uma ferramenta proprietária para ajudar no processo criativo, a JAM. A intenção era justamente colocar o foco no processo. Em vez de pensar “meu Deus do céu, eu tenho que ter uma ideia pra resolver um problema”, você pode pensar “ok, eu só tenho que fazer uma JAM bem-feita e no fim vou ter as respostas”. Na concepção da JAM, eu e o Gustavo Mini utilizamos uma série de conceitos que já foram abordados nos textos anteriores: pensamento visual, desenho, caos x ordem, prototipagem etc.

“A JAM é uma ferramenta simples e visual desenvolvida para sistematizar a criação de ações e campanhas de maneira focada e produtiva, sem perder o caráter artesanal e lúdico que esse trabalho exige.” – Zé Pedro Paz, CCO da DZ e Editor da Quarentena Criativa

Agora, nesse momento atípico de isolamento, como está o processo criativo de vocês? Como poderíamos unir forças para construir um processo mais adequado para as condições atuais? Como ele poderia nos ajudar a ser mais criativos e menos ansiosos? As perguntas são mais importantes que as respostas.

 

Texto e ilustrações toscas por Zé Pedro Paz, sócio e CCO da DZ Estúdio.

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