El Salvador aprova lei que torna o Bitcoin uma moeda corrente. Mas, qual o potencial impacto disso?

Esta semana, a assembléia legislativa de El Salvador, um país com pouco mais de 6,5 milhões habitantes incrustado na América Central, atendeu a uma proposta do presidente Neyib Bukele e aprovou uma lei que classifica o Bitcoin como uma moeda corrente no país.

Ele não irá substituir a moeda oficial do país (por acaso, o dólar estadunidense desde 2001, quando o colón salvadorenho foi dolarizado), mas é a primeira vez que uma nação reconhece oficialmente uma criptomoeda como moeda (o Japão, anteriormente, já o reconhecia como propriedade de valor), o que permite não apenas a compra e venda de produtos e serviços utilizando tal meio de pagamento de forma oficial, mas também como valor de troca em títulos monetários lastreados pelo governo.

Tal iniciativa abre portas para discutir quanto uma moeda, cujo controle de valor é feito organicamente, pode realmente existir como valor de troca em nossa sociedade.

Como assim?

bitcoin 1

Antes de mais nada o que é dinheiro?

Um símbolo.

“Um dinheiro” tem valor a partir do momento que é reconhecido por instituições e pela sociedade como algo que pode ser trocado por coisas que efetivamente sejam uma necessidade (funcional ou hedônica) humana: alimentos, roupas, medicamentos, meios de transporte, serviços, etc.

Ele surge na região de Turquia por volta do século VII A.C. como uma forma de intermediar transações entre produtos distintos, já que o modelo de escambo cria distorções entre o valor percebido de bens (quantos peixes valem uma vaquinha?). De início, metais (um pouco mais) raros eram utilizados para esculpir moedas; com um comportamento na idade média de guardar tais moedas de metal com um ourives que, em troca, emitia um recibo, passamos ter um outro nível de item de valor, a representação simbólica de um item raro usado como ferramenta de troca por aquilo que realmente precisávamos.

Assim a economia funcionou por muitos séculos e, os que tem um pouco mais de idade, lembrarão de ouvir a história de quando o dinheiro no mundo era lastreado em ouro, ou seja, que os governos possuíam reservas em ouro (o metal raro) que endossava a quantidade de papéis coloridos nas mãos das pessoas.

A adaptação de uma frase do escritor parisiense François-Marie Arouet (mais conhecido por seu pseudônimo, Voltaire) – “Se deus não existisse, seria necessário inventá-lo”, cuja autoria desconheço, diz:

“Se o dinheiro não existisse, nós teríamos que inventá-lo”

Com o tempo, este lastro desapareceu e, hoje, o dinheiro nada mais é do que bits e bytes trafegando no que atualmente chamamos de internet; números em telas, onde acreditamos (nós, pessoas do mundo) que, se quisermos utilizá-los para comprar um chocolate no final de semana, ele ainda estará lá neste dia.

Mas quem garante isso? Uma instituição financeira. Confiamos que uma empresa vai cuidar direitinho dos números nas telas e que eles não irão sumir de um dia pro outro.

Isto nos traz às duas funções efetivas de qualquer moeda corrente em qualquer lugar do mundo: (1) reserva de valor e (2) uso como ferramenta transacional.

O dinheiro em si (o pedaço de papel colorido, a forma redonda de metal ou o número que aparece na tela do seu home-banking) não pode ser consumido em si. Ele não atende à nenhuma necessidade humana diretamente. Se ninguém aceitasse trocar aquele papel com desenho de uma onça por algo que atendesse a uma necessidade humana, ele seria apenas… papel pintado.

Are Currencies an Investable Asset Class? | Balentine
Papel pintado

E como conseguimos mais papel pintado (ou fazemos crescer o número em uma tela)? Bem, de algumas maneiras. A mais comum é trocar nosso tempo por estes números. Trabalhamos, produzimos, geramos riqueza para uma instituição que, em troca, devolve parte destes ganhos para cada uma das pessoas envolvidas. Estas, por sua vez, utilizarão estes números para adquirir bens e serviços de outras empresas… o dinheiro vai circulando e assim temos o lindo conceito de economia (como gestão otimizada de recursos).

Mas, assim como eu não poderia pegar a vaquinha de alguém sem dar meus peixes em troca (afinal de contas, o dono da vaquinha gastou tempo de sua vida e energia vital para faze-la crescer saudável), para comprar algo precisamos dar algo; e pra isso temos este símbolo de valor chamado dinheiro.

Quase nunca, porém, quero obter algo imediatamente quando recebo o dinheiro. Então posso guardá-lo para utilizar posteriormente; este dinheiro (números na tela) se torna, então, uma reserva de valor.

Quanto mais algo está disponível no mundo, menos valor ele tem, assim como os papéis coloridos. Se a Casa da Moeda imprimisse dinheiro e desse “de graça” pra todo mundo, os preços dos bens, naturalmente, aumentariam, afinal, estamos comparando esforços (tempo e energia) para determinar preços. Se é mais fácil pescar peixes do que criar uma vaca, o preço da vaca vale mais peixes. A inflação é a corrosão do valor do dinheiro. O papel colorido (números na tela) valem menos para o mesmo produto ou serviço.

O segundo ponto trata da aceitação das pessoas deste símbolo de valor. Se você tentar comprar 5 pãezinhos dando, em troca, um desenho feito por seu filho de 2 anos da idade, por maior que seja a capacidade artística de seu rebento, dificilmente sairá do local com um saco de carboidratos. Isto porque o caixa da padaria (e potencialmente de qualquer outro empreendimento comercial) não acredita que este desenho tenha a capacidade de acumular valor e/ou ser trocar por outro produto ou serviço.

E as criptomoedas?

A esta altura, certamente todos já ouviram falar de Bitcoin e/ou outras criptomoedas e deve possuir maior ou menor nível de conhecimento sobre como funcionam.

A ideia aqui não é explicar exatamente como funcionam as criptomoedas (outros posts aqui falam sobre isso), mas gerar a reflexão sobre os potenciais impactos da decisão tomada pelo governo salvadorenho e eventuais outros que se sigam.

Fazendo breve uma longa história, era uma vez um personagem misterioso chamado Satochi Nakamoto que, em 2007, publicou um artigo e escreveu um código de programação demonstrando como uma tecnologia criada na década de 80 – a Blockchain – poderia ser usada para criar uma estrutura autogerenciável de valores monetários. Passa o tempo, noves fora, surge o Bitcoin, seguido por outras criptomoedas.

Isto significa que qualquer um – qualquer um mesmo – pode criar sua própria criptomoeda (um dia inventarei a pugcoin!). Contudo, alguém trocaria algo (produto ou outro dinheiro) por sua moeda apenas se nela enxergasse a possibilidade de guardar valor e/ou realizar transações.

SIC Notícias | El Salvador torna-se no primeiro país a reconhecer bitcoin  como moeda de troca legal

Em essência, as criptomoedas são gerenciadas por sua própria lógica dentro de uma rede blockchain. A disponibilidade de moedas é determinada pela quantidade de transacões realizadas e o valor da moeda (o “preço do dinheiro”), pela oferta e demanda entre comprados e vendedores (de dinheiro)

No caso do Bitcoin (e outras criptos), não há uma instituição que lastreie ou controle a emissão e valor percebido da moeda – como um Banco Central, Instituições financeiras (públicas ou privadas). Seu valor é determinando unicamente pelos indivíduos que o trocam entre si e/ou utilizam em eventuais transações que o aceite (o que, convenhamos, não é amplamente disponível). O preço do dinheiro sobe se há mais gente querendo compra-lo do que vende-lo; o preço do dinheiro cai se há mais gente querendo vende-lo do que compra-lo. É a representação última da lei da oferta e demanda de Adam Smith na economia clássica.

Gráficos de oferta e demanda online | Lucidchart

Caso não seja possível realizar transações (funcionar como ferramenta transacional) ou possua uma correlação direta com um lastro, o dinheiro passa a ter apenas um caráter especulativo, ou seja, especula-se (acredita-se) que, no futuro, esta coisa (papel colorido; números na tela) lhe permitirá adquirir coisas que realmente atendam a necessidades humanas. Por isso, hoje, investir em criptomoedas é especular que, no futuro, este tipo de dinheiro será cada vez mais liquido, ou seja, mais aceito pela sociedade e instituições, seja como reserva de valor como, principalmente, pela possibilidade de se adquirir bens.

E o que a decisão de El Salvador tem a ver com isso tudo?

Overview — MusAid
A bela capital de El Salvador, San Salvador

Bem, já vimos que para que um dinheiro tenha valor, as pessoas, grosso modo, precisam acreditar nisso.

Criptomoedas, até o momento, tem seu valor lastreado na confiança dos usuários que compõem sua rede blockchain. Consigo comprar e vender bitcoins porque outras pessoas também acreditam que essas coisinhas têm reserva de valor.

Sinais dados – até então, por empresas – no sentido de aceitarem bitcoins (ou outra cripto) como forma de pagamento torna-o mais crível, como se ele ganhasse alguns pontos a mais em uma percepção de confiança daqueles que o possuem ou querem passar a possui-lo.

Em março de 2021, o Tony Stark Elon Musk comunicou que a Tesla passaria a aceitar Bitcoins como forma de pagamento na compra de seus veículos; concomitantemente, a empresa adquiriu o equivalente a U$ 1,5 bilhão na criptomoeda. Isto foi o suficiente para fazer o valor do bitcoin disparar 15% em um dia, seguindo de outras altas nos dias subsequentes.

Estes movimentos passavam o seguinte recado às pessoas: “nós, uma corporação multimilionária, endossamos que este negocinho colorido tem valor“.

Tanto que o movimento contrário feito dois meses depois (em maio de 2021) – a declaração que não mais aceitaria esta forma de pagamento devido ao alegado impacto ambiental na mineração da criptomoeda – resultou em uma queda proporcional em sua cotação. Curiosamente, um pouco antes deste anúncio, a empresa havia vendido 10% de sua reserva; uma operação que, em dois meses, gerou U$ 101 milhões de “lucro”.

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Cotação do Bitcoin x USD

Neste sentido, pela primeira vez temos um governo – com suas estruturas bancárias – endossando o valor de reserva E transacional de uma moeda que, a principio, tem valor determinado livremente e cuja liquidez não pode ser controlada por nenhuma instituição, pública ou privada.

A China (maior PIB global) está reticente, prefere aproveitar-se dos benefícios das redes blockchain sem perder o controle sobre a disponibilidade de moeda ao criar sua própria moeda virtual; a Venezuela (posição 47 em PIB), criou uma moeda virtual ‘lastreada’ nas reserva de petróleo do país para tentar tornar um pouco mais gerenciável os assustadores 65.000% (sessenta e cinco MIL por cento) de inflação em 2020.

À parte das iniciativas proprietárias, a grande maioria dos países simplesmente restringem-se a declarar “legal” ou “ilegal” cada criptomoeda estando, no primeiro grupo, a União Européia, os Estados Unidos, o Canadá (proibindo, contudo, instituições financeiras de opera-lo sem registro específico) enquanto, no segundo, estão Algeria, Egito e Marrocos.

Claro que, na módica posição 108 entre os maiores PIBs do mundo, a economia salvadorenha não tem impacto tão relevante no fluxo de valores globais. A decisão, contudo, poderá inspirar outras economias do mundo a adentrarem neste ainda incipiente mundo da descentralização da economia e, com isto, reforçarem a percepção de confiança tanto entre os meros mortais como entre empresas que possam passar a aceitar uma criptomoeda como forma de pagamento por seus bens e serviços, cientes de que poderão, posteriormente, converte-la novamente em insumos ou salários.

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