Você tem um tempo?

É no mínimo irônico escrever um texto sobre o tempo e pensar que você, leitor, pode estar preocupado com o tempo que vai levar para lê-lo. Você não está errado.

Para o doutor em Ciências Sociais, Luís Mauro Sá Martino, “o nosso tempo é o bem mais valioso que temos porque ele é absolutamente irreversível”, por isso vou fazer o possível para que o seu instante de vida depositado nesta leitura valha a pena.

O tempo sempre foi um tema atual e constante nas discussões, mas acredito que com o início da pandemia ele se tornou o centro das atenções. Afinal, dadas as circunstâncias, fomos obrigados a passar mais tempo em casa, mais tempo com a família e mais tempo com a nossa própria companhia. Mas nós estamos de fato aproveitando esse tempo ou sendo reféns dele?

Antes de discorrer sobre essas reflexões, talvez seja interessante trazer à luz o que provavelmente deve ser uma das mais antigas indagações humanas: o que vem a ser o tempo?

Quando eu vejo essa pergunta, seja nos livros ou nos documentários, geralmente ela vem associada à reflexão que Santo Agostinho traz no seu livro “Confissões”, ele diz o seguinte:

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Eu gosto dessa reflexão porque ela nos dá a ideia da complexidade que o tempo tem. Não conseguimos defini-lo, não é material e nem é palpável, por isso a gente começa a entender como é importante discutir, pensar e refletir sobre esse tema, justamente para que se tenha consciência do que estamos fazendo com o nosso tempo.

É Santo Agostinho também quem tem uma das reflexões mais interessantes acerca da percepção do tempo enquanto passado, presente e futuro.

Segundo ele, o mais correto seria dizer presente do passado, presente do presente e presente do futuro, porque quando lembramos do passado, nunca voltamos ao passado, é sempre uma lembrança presente, e o mesmo ocorre com o futuro, é sempre uma imaginação presente. Então, se o passado já passou e o futuro está sempre por vir, vivemos constantemente no presente? Na verdade, o que precisamos entender é que a nossa vida é feita de instantes, o tempo que vivemos, o qual chamamos de presente, é nada mais do que uma sucessão de instantes imaginários.

No documentário “Quanto tempo o tempo tem”, o filósofo e escritor André Comte-Sponville cita um exemplo que torna a explicação mais clara: experimente bater a palma ou estalar os dedos. Essa ação que você acabou de fazer já não pertence mais ao presente, já faz parte do passado, por isso que o presente é um instante. Para Santo Agostinho, se o presente continuasse sempre presente não seria tempo, e sim eternidade. Quando entendemos isso, compreendemos a fugacidade do nosso tempo.

Ainda é difícil compreender o tempo, e talvez a gente nunca chegue numa conclusão, porém mais importante do que chegar num conceito único, é ter consciência do que estamos vivendo. E por que isso importa? Porque o tempo é finito.

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Você já se perguntou se o tempo está passando mais rápido? Não parece que iniciamos um novo ano e logo estamos nos despedindo dele? Domenico de Masi, sociólogo italiano, disse que antes “a vida era mais curta, mas o tempo era mais longo”, ou seja, vivíamos menos, mas o tempo parecia demorar mais para passar. Isso tudo é uma questão de percepção, na verdade os dias até estão mais longos, mas acaba sendo imperceptível na nossa rotina.

Essa sensação de que o tempo se esvai é por conta do mundo acelerado em que vivemos, nós preenchemos os nossos dias com atividades e compromissos, deixando a nossa rotina cada vez mais intensa. Experimente viver um dia sem muitas atividades e a sua percepção da velocidade do tempo será diferente.

Domenico se tornou muito famoso pelo conceito de ócio criativo, o qual hoje é visto como algo negativo, mas, segundo o sociólogo, antigamente o tempo para o ócio criativo era necessário e o trabalho era visto como algo que não dignificava o homem, pelo contrário, retirava horas preciosas que poderiam ser destinadas ao pensamento. O problema é que hoje todo o nosso tempo é usado para produzir, e não necessariamente para pensar, ou então, os pequenos espaços que sobram no nosso dia são preenchidos pelo celular. Se antes levávamos 1 hora para realizar uma atividade e agora levamos 10 minutos para realizar a mesma atividade, os 50 minutos que ganhamos com a tecnologia dificilmente são destinados ao lazer ou ao ócio criativo, em vez disso usamos esse tempo para incluir mais atividades na nossa rotina, até o momento de não dar mais conta de realizá-las.

A celeridade é uma característica da nossa sociedade atual, e você já percebeu como isso impacta o nosso dia a dia? Veja por exemplo as notícias, elas chegam para nós a todo momento, basta você atualizar o seu aplicativo para receber uma informação inédita. No livro “Dá um tempo!”, a Izabella Camargo descreve bem esse processo de consumo: enquanto você está digerindo uma informação, já surge algo mais recente, e você acha que também precisa estar a par desse novo conteúdo, como se ele pudesse alterar o seu presente. Dessa forma, você acaba desencadeando um estado perpétuo de incompletude, porque você pode ter a informação, mas não necessariamente o aprendizado. Esse medo de não estar atualizado com todas as notícias e essa sensação de estar perdendo algo são características da síndrome de FOMO (Fear Of Missing Out, ou Medo de Ficar de Fora).

Essa sociedade do século 21 é chamada pelo filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han, de sociedade do desempenho. Essa se diferencia da sociedade do século passado, a qual era conhecida como a sociedade disciplinar e marcada pela proibição, pelo não, pela obediência e pela negatividade. A nossa sociedade é marcada pela motivação, pelo incentivo e pelo excesso de positividade.

Mas como o excesso de positividade pode ser prejudicial? Pense em quão desgastante pode ser viver numa “sociedade que crê que nada é impossível”, numa sociedade que cobra desempenho e produção a todo momento, e numa sociedade que lhe dá a liberdade de ser dono de si. Nas palavras do próprio filósofo, “o sujeito do desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo”, vive num estado de culpa por não conseguir realizar justamente numa sociedade que lhe oferece liberdade para tal. Porém, essa liberdade é traiçoeira, num mundo com excesso de opções e possibilidades, a liberdade de escolha não traz paz, e sim angústia. O sujeito quer escolher, mas não quer lidar com o ônus da escolha. Essa constante cobrança tem um preço:

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E quando se fala de tempo e preço, já lembramos da famosa expressão “tempo é dinheiro”, afinal, como já vimos no início desse texto, o tempo é irreversível. Diante disso, provavelmente você já deve ter ouvido ou até mesmo pesado e dito a seguinte frase: “Eu não vim até aqui para desistir agora, não é?”. À primeira vista essa frase parece refletir coragem e persistência, mas ela também pode esconder uma ilusão. É o conceito de falácia do investimento irrecuperável ou custo irrecuperável, ou seja, nós dedicamos tanto tempo a algo, seja trabalho, relacionamento ou estudo, e mesmo depois de tanto tempo, esse algo ainda não nos satisfaz, mas, em detrimento do tempo investido, não queremos desistir. Quer ver um exemplo simples? Imagine que você está no ponto de ônibus há 1 hora, depois de tanto tempo esperando você pensa em pedir um Uber para ir até o seu compromisso, mas pensa “e se na hora que eu chamar o Uber o meu ônibus chegar? Não, não vou jogar essa 1 hora fora, vou esperar mais um pouco”.

Tudo bem, não é nenhuma catástrofe esperar o ônibus por mais alguns minutos, mas e se em vez de um ônibus fosse um relacionamento? Ou um trabalho? Quais os impactos de optar por continuar numa situação que não lhe satisfaz, somente porque você já investiu, por exemplo,  7 anos da sua vida? Acredito que o clássico italiano “O Deserto dos Tártaros” traz a melhor metáfora para essa questão.

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O livro foi escrito em 1940 por Dino Buzzati, e na época foi considerado pela crítica especializada um dos melhores livros do século XX. O livro conta a história de Giovanni Drogo, um jovem tenente que é mandado para o forte Bastiani como parte da sua formação. Esse Forte está praticamente desativado, porque nenhum inimigo mais é esperado que chegue para o ataque, portanto estamos falando de um lugar que existe mais por protocolo do que por necessidade.

Mesmo assim, a esperança de uma batalha é a grande força propulsora que preenche as vidas de quem vive no forte. E esse é o grande problema de Bastiani: quem chega ao forte, não consegue mais ir embora. A expectativa de que algum dia o inimigo irá chegar e que a tão sonhada batalha irá acontecer é o suficiente para paralisar as vidas dos que são mandados ao Bastiani.

(A partir daqui contém spoiler)

O leitor acompanha o dilema de Drogo que pensa em desistir e ir embora do Forte, mas o receio de que o inimigo chegue justamente quando ele for embora o impede de tal ato. Assim, Drogo permanece, e o que era para ser meses tornam-se anos, sempre alimentando uma angustiante espera para o grandioso dia que justificará tamanha esperança.

Depois de 15 anos no forte, Drogo consegue uma licença de 30 dias para voltar à cidade e reencontrar sua mãe e seus amigos. Porém, ele retorna ao Bastiani antes do prazo por perceber que a vida que abandonou não lhe pertence mais. Nesse momento do retorno de Drogo ao Bastiani o leitor se depara com esse doloroso trecho:

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Muito tempo depois, percebe-se uma movimentação no forte: sim, os inimigos estão chegando! Finalmente a batalha irá acontecer e justificará a existência da vida de todos que estão presentes no forte. Drogo, que tanto esperou por essa notícia, está doente e muito debilitado. Justamente ao encontrar o momento que dará sentido a sua vida, Drogo é mandado embora do Bastiani para travar a batalha mais difícil de todas e a única que ele jamais gostaria de enfrentar: morrer sozinho e sem ter feito nada na vida.

Não foi fácil ler o final desse livro, não somente por conta do trágico desfecho da personagem, mas porque ele faz com que o leitor entre em contato com um grande medo. É praticamente impossível finalizar a leitura e não refletir sobre as suas próprias escolhas e o rumo que a sua vida está tomando.

No livro “Dá um tempo!” tem duas falas que dialogam bem com esse contexto. Para o músico Oswaldo Montenegro “90% da humanidade ouve que o bom mesmo será quando você entrar na faculdade, bom mesmo será quando você sair da faculdade, bom mesmo será quando você se casar […] E a tal da vida não começa nunca! É preciso fazer com que a vida comece.” Já a médica especialista em cuidados paliativos, Ana Cláudia Quintana Arantes, afirma que o que separa o nascimento da morte é o tempo, e o que fazemos com esse período é a nossa vida. Assim, para Ana, quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo final de semana ou pelo fim do ano, estamos, na verdade, esperando ansiosamente para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. Difícil, né? Enquanto eu estava preparando esse conteúdo, eu finalizei o livro “Vermelho Amargo” do mineiro Bartolomeu Campos de Queirós e me deparei com a seguinte frase que simplifica a discussão sobre a importância do tempo: “[…] viver um dia é ter menos um dia”.

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E se um dia não fizer mais sentido falar sobre a finitude do nosso tempo? Muito já se fala sobre um cenário cada vez mais real e próximo: a imortalidade.

Você quer viver para sempre? Antes de responder a essa pergunta, quero que você pense nestas seguintes questões: Teríamos dinheiro para viver mais 20 anos além da nossa atual expectativa de vida? No Japão, os idosos já morrem solitários nos asilos, por que aumentaríamos esse tempo de solidão? Viver mais não significa ser jovem, já pensou que a nossa população seria pouco empreendedora e criativa? E a principal pergunta de todas: Por que você quer viver para sempre? Eu vi esses questionamentos nos documentários “Quanto tempo o tempo tem?” e “Explicando”, ambos disponíveis na Netflix, e confesso que eles me fizeram repensar. Eu quero viver para sempre? Antes, eu diria que sim, sem pestanejar, agora, já não tenho tanta certeza, porque “para sempre” é muito tempo.

Pense na passagem de um ano. No Ano-Novo você planeja metas profissionais e pessoais para os próximos 12 meses, e o seu objetivo é se dedicar para conseguir concretizar tudo aquilo que planejou para que ao final desse período você possa olhar o que conquistou e planejar novas metas. Mas e se em vez de 12 meses fossem 24 meses? E se você não tivesse um prazo para concluir as suas metas, você as concluiria mesmo assim? Será que não realizamos coisas na nossa vida e estamos buscando sempre aproveitar o melhor de cada momento justamente porque tudo acaba? E se não acabasse, como seria a nossa relação com os outros e com os nossos próprios objetivos? A finitude é o que dá sentido à nossa existência, é que nos faz correr atrás dos nossos objetivos, aproveitar os momentos e viver intensamente (sem colapsar).

De qualquer forma, a ciência e a tecnologia estão avançando rapidamente, de modo que podemos ter novidades sobre a extensão da nossa vida nos próximos anos. Porém, muitas gerações ainda serão mortais, portanto, aceitar a nossa finitude e entender a melhor forma de aproveitar o nosso tempo, ainda vão fazer parte da nossa realidade.

Falar sobre a passagem do tempo é falar sobre a passagem da vida, e por isso, às vezes, é muito delicado falar sobre esse tema. Eu não quero que você termine esse texto com um sentimento pesado, assim, quero finalizar com uma fala que eu pude anotar de uma live de um dos meus escritores favoritos, Valter Hugo Mãe. É mais ou menos assim: “Precisamos ser legítimos na experiência de viver e aceitar a nossa pequenez. Não é preciso ter uma vida épica, mas uma vida digna.”

Por que eu acho essa fala importante? Porque hoje a única forma de ser imortal é por meio da arte, ela resiste ao tempo e, no caso da literatura, faz com que o escritor se torne eterno. Portanto, ouvir de um autor que certamente se perpetuará por meio da sua arte, que precisamos encarar o nosso destino e aceitar a vida que conseguimos levar, me traz tranquilidade e acalma a minha alma. Espero que essa mesma fala também possa aquecer um pouquinho o coração do leitor que chegou até aqui.

REFERÊNCIAS:

BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

CAMARGO, Izabella. Dá um tempo!: como encontrar limite em um mundo sem limites. 1. ed. Rio de Janeiro: Principium, 2020.

QUANTO tempo o tempo tem. Direção: Adriana Dutra. [S. l.s. n.], 2015. Disponível em: Netflix. Acesso em: 1 jul. 2021.

EXPLICANDO. [S. l.s. n.], 2018. Disponível em: Netflix. Acesso em: 1 jul. 2021.

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