Educação nos tempos de cólera

No ótimo “Cabeça de Nêgo”, que chegou ao Globoplay, alunos lutam por um direito universal 

Saulo (Lucas Ribeiro) entra na escola Major Altair, em alguma cidade do Nordeste, carregando um livro dos Panteras Negras no braço. Em sala de aula, um colega o chama de “macaco”, Saulo o agride e então é encaminhado para ser expulso da classe. A partir daí, em vez de obedecer o sistema, Saulo o subverte: ocupa o lugar, e só saí de lá depois que suas reivindicações, como melhorias estruturais e didáticas, sejam atendidas. 

“Cabeça de Negô” (Brasil, 2021) usa o movimento secundarista brasileiro, mais recentemente as manifestações de 2016, como matéria-prima, mas não é uma história real. Saulo é um personagem que abocanha diversas vertentes, ideologias e certezas pra definir um objetivo maior que o calor da sua pouca idade. 

Aos 17 anos, ele sabe que tem muito chão pela frente. Só que também já entendeu que precisa aterrar o próprio caminho se quiser sair do lugar. E faz isso filmando e postando vídeos na internet, denunciando as péssimas condições do prédio, da cantina e dos livros. 

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O protesto dá certo. Em poucas horas, outros alunos se acomodam na calçada da escola, enquanto lá dentro, os professores, juntamente com a direção, decidem ou pela expulsão compulsória de Saulo, ou pela sua transferência. 

Escrito e dirigido por Déo Cardoso, que até aqui tinha feito somente curtas-metragens, o filme evita tratar seus personagens com discursos panfletários ou fáceis. Em vez disso, Déo monta um terreno pra explorar seu posicionamento e desenvolver os personagens em torno de uma história, não de uma causa pessoal. Sua direção é naturalista, contida em alguns momentos, e bruta quando é necessário. Se Déo Cardoso não abranda sua crítica, é porque essa história admite poucos filtros. 

Mesmo nas cenas onde o discurso do diretor e sua visão são mais políticas, Déo dá um tom lúdico a elas. Não usa palavras e deixa que a imagem pura fale por si mesma. 

Em um desses belos momentos, Saulo lê o livro dos Panteras Negras enquanto ícones do movimento negro são refletidos na parede atrás dele. 

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É bom também ver como Déo capta o comportamento desses estudantes. Podem ser atores inexperientes ainda, mas isso não dificulta na conexão com o espectador. Ao contrário, a naturalidade das atuações é um ponto positivo. 

Tem muito do clássico “Faça a coisa certa”, de Spike Lee, em “Cabeça de Nêgo”. Um personagem central que entra em choque com o sistema e vira seu universo do avesso, o racismo, o tratamento da mídias aos movimentos sociais, especialmente aos ligados ao movimento negro. A cena final de “Cabeça de Nêgo, inclusive, se conecta com o filme americano pela emergência de uma explosão coletiva, pela violência e o realismo dos ataques e a histeria das pessoas.

Déo faz uma transição tão boa entre a invasão da polícia à escola fictícia com as cenas reais que aconteceram em 2016, que o espectador é atingido no peito. De novo, Saulo não é um mártir. Ele é um estudante preto, pobre e da periferia que ousou sair do lugar onde o colocaram. Saulo quer mais, e sabe que pode mais também. 

Sim, os tempos são de cólera, mas não estão perdidos. Enquanto os cães ladram, a juventude passa.

Cabeça de Nêgo está disponível no Globoplay.

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