O homem sem fronteiras

Em “Ney Matogrosso, a biografia”, o jornalista Julio Maria conta como um garoto do interior do Brasil virou um dos nossos maiores artistas.

“Ney Matogrosso, a biografia” (Companhia das Letras, 465 páginas), o jornalista Julio Maria remonta os 80 anos do artista sem dispensar nenhum incômodo. 

Depois de uma tumultuada saída da casa dos pais em Bela Vista, hoje o Mato Grosso do Sul, ele entrou pro exército. Não por vocação, mas por pura fúria. A estadia no quartel não durou muito e, filho de militar, Ney sabia que jamais seria como o seu pai. 

Em Brasília, a música entrou em sua vida por acidente. A paixão mesmo era o teatro. Integrante do elenco de um espetáculo de Dias Gomes, cuja estreia nunca aconteceu, ainda atuou ao lado de Regina Duarte em uma peça infantil. Ney de Sousa, como assinava até então, criava os figurinos, atuava em outros papéis pequenos do espetáculo, ajudava na iluminação. 

Foi Luli, amiga e compositora, que deu um jeito de botar Ney em contato com João Ricardo, o líder dos Secos e Molhados. Por acaso, o vocalista principal da banda tinha saído. A vaga ficou com Ney porque eles precisavam “de um cantor que conseguisse chegar nos agudos que só as mulheres conseguiriam”. 

A partir daí começa a trajetória do grupo tido como pop e que vendeu mais do que Roberto Carlos. Mas, aos 31 anos, Ney Matogrosso nunca tinha comprado um LP na vida, nem assistido a um show de rock. As principais referências do que viria a ser um dos maiores nomes da música brasileira eram, em sua maioria, vindas do teatro. 

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Ney Mattogrosso e o parceiro de estrada, Raimundo Fagner.

Julio Maria escreve a biografia do artista ligado no 220 volts, e consegue amarrar os fatos mais curiosos da vida de Ney Matogrosso sem ser episódico. 

Ao ganhar a primeira grana boa com os shows do Secos e Molhados, Ney entra no banco para fazer um deposito. O gerente estranha. Bota Ney numa sala fechada com outras pessoas e manda: “onde você arrumou tanto dinheiro?”. Ao ouvir que o rapaz na frente deles era o mesmo que cantava “O Vira”, todo maquiado, os bancários riram muito e não deixaram que a conta fosse aberta. Em casa, Ney jogou o dinheiro num saco e botou em um canto da sala com o aviso: “quem precisar é só pegar”. 

Outra história inacreditável no novelo captado por Julio. Um jovem guitarrista chamado John Flavin acompanhava-o pelos shows da banda. Quando tudo acabou, teve uma forte crise emocional que levou-o a ser internado pela família no Instituto de Psiquiatria Comunitária. Lá, o jovem foi recebido por duas pessoas: um jovem advogado e Olavo de Carvalho, hoje presente nas manchetes como guru de políticos. 

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O icônico grupo Secos e Molhados

Muita gente entrou e saiu da vida Ney como um raio e fazendo barulho de trovão. De Elis, Julio Maria conta um show que Ney e ela fizeram em Brasília. Passaram a noite se drogando no quarto do hotel e conversando. A conexão desse dia foi muito forte e Elis morreu quatro meses depois deixando Ney num tipo de orfandade que se intensificou ao longo dos anos com a chegada da AIDS. 

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O autor do livro, Julio Maria.

Cazuza, o marido, Marco de Maria, Raphael Rabello, instrumentista parceiro de Ney ao longo de vários anos… todos mortos pela epidemia de HIV que se alastrou pelo Brasil nas décadas de 80 e 90. 

Ney nunca foi contaminado. O que não quer dizer que não teve a vida tocada pelos efeitos da doença. A parceria com Cazuza, na música e na vida, rende as melhores passagens do livro justamente porque concentra toda a liberdade e a erupção que Ney vivia em tempo integral. 

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Caetano Veloso, o artista que inspirou Ney, e Cazuza.

O primeiro e tenso show no Rock in Rio de 85, a descoberta e todo o processo de criação do RPM, grupo de Paulo Ricardo, passando pela intensa experiência com o Santo Daime, a nudez como elemento primordial e provocativo, toda a criação de seus álbuns e escolha por ser um artista teatralizado, que une som, sílaba e corpo como extensão da voz, são descritos com muito rigor. São trechos que não deixam o leitor escapar porque revelam o quanto Ney imprimia personalidade ao interpretar qualquer canção. Chico Buarque, ao ajudá-lo na escolha  do repertório do disco “Um Brasileiro”, onde Ney canta diversas canções dele, disse sem cerimônia: “você virou co-autor das músicas”. 

“Ney Matogrosso, a biografia” é um livro que não dispersa elementos, mas vai concentrando os momento mais importantes, gota a gota, até que o leitor se derrame. Como biógrafo, Julio Maria sabe que não precisa narrar tudo o que aconteceu na vida de Ney Matogrosso para desvendar o personagem, sua vida ou sua carreira. 

A obra de Ney Matogrosso é uma confissão a céu aberto. 

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