A vida que fica para depois

Lya Luft faleceu no dia 30 de dezembro de 2021, e desde o início de novembro eu tenho um livro dela na minha estante, até então intocado.

Uma das minhas últimas leituras de 2021 foi “A Biblioteca no Porão”, de Eustáquio Gomes. Por ser fruto de uma garimpada na Feira do Livro, nada sabia sobre o autor. Recorri ao Google e descobri que Eustáquio Gomes faleceu em 2014. Quanta ironia. Sabia que tinha em minhas mãos algo inédito e novo para mim, e que bastava pesquisar um pouco para encontrar Eustáquio Gomes imortalizado em sua obra. Mas ainda assim, sabia que o seu legado, embora enorme, era finito. Por mais que eu me encantasse pelo seu livro e pela sua forma de escrever, já não poderia exigir mais nada. Um novo livro ou um autógrafo já não eram mais possíveis.

No último domingo, 02 de janeiro de 2022, aconteceu de novo. Eu estava assistindo a um episódio antigo do Café Filosófico na TV Cultura, e nele Contardo Calligaris, psicanalista italiano, discorria sobre a civilização brasileira. 30 minutos depois descobri, totalmente ao acaso, que Calligaris faleceu em março de 2021. Quanta ironia.

Esses dois fatos me marcaram, não porque eu era uma fã de Eustáquio Gomes ou Contardo Calligaris, mas porque me fizeram pensar: não é impressionante como as coisas nos escapam? Aquilo que parecia tão vivo, real e presente, de uma hora para outra já pertence ao passado. É claro que isso faz parte da vida, e acredito que eu não conseguiria me antecipar a esses acontecimentos. Porém, algumas coisas nos escapam por descuido.

A escritora Lya Luft faleceu no dia 30 de dezembro de 2021, e desde o início de novembro eu tenho um livro dela na minha estante, até então intocado. Não sei dizer quando planejava lê-lo, já que eu tinha outras prioridades e realmente li outros livros nesse ínterim. Ao saber da notícia de sua morte, a leitura do seu livro tornou-se urgente e comecei naquela mesma noite. De qualquer forma eu já havia chegado tarde demais.

“O tempo é um rio que corre”, por acaso, esse é o título do livro que veio parar na minha estante. É até curioso citar o “acaso” aqui, afinal, Lya deixa bem claro em seu livro que não acredita em acaso.

Em uma das passagens, Lya fala sobre a sua comemoração de 70 anos, de início ela pensa em planejar uma festa, mas muda de ideia e decide deixar essa comemoração para a próxima década. Essa declaração me acertou de tal forma que corri para saber com quantos anos ela havia partido. 83 anos. Como é difícil ler um livro escrito no presente, repleto de pensamentos futuros e tão vívidos quando uma pontinha de culpa acompanha toda a sua leitura. Não sei se ela realizou a tal festa, mas senti um alívio, gosto de pensar que quando ela postergou esse plano, o futuro pacientemente esperou. Mas às vezes ele se cansa.

Você já deve ter percebido que este texto não é sobre um livro negligenciado por uma leitora, na verdade é sobre a vida que deixamos para depois. As leituras que não fazemos porque as consideramos difíceis, as mensagens que não respondemos por falta de tempo, e o agora que não vivemos porque acreditamos que sempre haverá um amanhã. Nós não temos todo o tempo do mundo, e por mais que a gente ainda fique aqui por muito tempo, sempre estaremos nos despedindo de pequenos sonhos que já não são mais possíveis.

Sobre essas despedidas a Lya tem o acalento certo: “Porque o tempo passa é que tudo se torna tão precioso. Porque estamos sempre nos despedindo – dessa luz, dessa paisagem, dessa rua, desse rosto, desse momento, e de nós mesmos nesse momento -, tudo assume uma extraordinária importância.”

A ideia deste texto surgiu da vontade de escrever uma resenha do livro da Lya. Tenho consciência de que não coloquei aqui a sinopse da obra ou uma opinião sobre o livro. Mas, em minha defesa, usarei a última frase que Lya escolheu para encerrar a sua obra: Nada será banal. E a minha experiência literária com a obra de Lya Luft não foi nada trivial, poderia sim ter sido totalmente diferente se eu não tivesse demorado tanto e postergado aquilo que me esperava. Dito isso, acredito que o livro não é algo acabado e fechado em si mesmo, portanto, tenho para mim que a resenha de uma leitura nem sempre é sobre o livro, mas sobre o leitor.

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