O maravilhoso ‘Sertânia’, de Geraldo Sarno, volta aos cinemas

Em cartaz no Belas Artes, o filme marca as homenagens ao cineasta, morto em fevereiro.

Em ‘Sertânia’ (Brasil, 2020), Antão (Vertin Moura) é um cangaceiro que ao levar um tiro durante uma batalha no sertão, vê a vida passar diante dos seus olhos. O tom memorialístico do filme, que ora mistura delírio, ora revela lembrança, é desenhado por uma fotografia em preto e branco que o diretor, o mestre Geraldo Sarno, importou do Cinema Novo. 

A estética da qual ele mesmo usufrui em outros tempos, uma vez que é um artista vivido durante os anos de nascimento do movimento cinematográfico brasileiro e um de seus representantes, traduz mais do que uma noção visual ou a exploração da realidade do nordeste. 

A estética da fome é adotada por Geraldo Sarno de maneira bruta e essencial; do seu modo nativo. Só pra dissecar um pouquinho mais desse ponto importantíssimo de ‘Sertânia’, o teórico Ismail Xavier, disse que essa estética “se instala na própria forma do dizer, na própria textura das obras. (…) Um estilo que procura redefinir a relação do cineasta brasileiro com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante. A carência deixa de ser obstáculo e passa a ser assumida como fator constituinte da obra”

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Geraldo Sarno, diretor de ‘Sertânia’.

É bárbara a forma do diretor usar a câmera como observadora desse lugar árido e de pouca esperança. Quando Antão, já ferido, se arrasta pelo chão, seu ponto de vista impõe ao espectador que participe desse momento de maneira muito marcante. Estamos nos arrastando com ele. 

Antão foi levado para São Paulo pelas milícias do nordeste, mas volta para seu lugar de origem e torna-se um cangaceiro no bando de Jesuíno (Julio Adrião). 

Não dá pra saber por quanto tempo Antão agoniza. Geraldo Sarno estica a véspera da morte do personagem e metaforiza sobre o próprio cinema em alguns momentos, quando se deixa filmar o próprio set do filme, as marcações e os direcionamentos aos atores. 

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É uma forma de quebrar as paredes da ficção ao mesmo tempo em que reforça seu concreto memorial, o de ver um filme passar em sua frente antes de morrer. 

Para trabalhar a religiosidade da região, Sarno escreve uma cena genial de Antão indo para uma espécie de purgatório. Ele precisa encontrar o pai, que já morreu. E Sarno espelha o mito grego de Caronte, o barqueiro do Hades, o inferno mitológico, para fazer seu protagonista encontrar seu próprio inferno. Ou seu céu. De boi Bumbá à Última Ceia, o quadro de Leonardo da Vinci, ‘Sertânia’ usa diversos símbolos.

Dentre as várias referencias históricas, sociais, religiosas e cinematográficas, Geraldo Sarno maneja cada referência sem descuidar da crítica aos momentos atuais. As milícias do sertão, que disputam poder com as instituições políticas e vivem como uma espécie de poder paralelo, cumprem um dos propósitos contemporizadores. 

A montagem do filme, que é febril, ambiciosa e cheia de justaposições, dá conta de organizar a desordem com que Antão relembra da própria vida. E a trilha é de uma beleza única, além de ter um papel fundamental para botar o espectador dentro do vendaval da mente de Antão. A trilha dispensa instrumentos ou ritmos característicos do nordeste e adota tons psicodélicos, fortes. 

O resultado é mais ou menos como se o David Lynch dirigisse a própria versão de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’. A comparação é só uma brincadeira. O mestre, Geraldo Sarno, tem uma obra rica, vívida e original. 

Com essa fusão entre o metafísico e o filosófico, entre o sertão o urbano, entre política e poesia, ‘Sertânia’ mostra que os problemas do Brasil permanecem os mesmos dos anos 60, quando o Cinema Novo nasceu para denunciá-los: a fome, a miséria e a corrupção. 

Mas ‘Sertânia’  também é a despedida esplendorosa de Geraldo Sarno, que faleceu em fevereiro, aos 82 anos. Mais do que seu último filme, ele deixa um testamento visual em forma de protesto. Resistir à miséria não nos tornou menos miseráveis. 

Onde assistir: de graça, no Belas Artes, em SP. E disponível no NOW para aluguel.

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