De volta aos clássicos: ‘O Beijo da Mulher-Aranha’, com William Hurt

Dirigido por Hector Babenco, o filme é um dos grandes trabalhos do ator, falecido nesta semana.

Dois homens dividem a mesma cela. Enquanto Luis Molina (William Hurt) está preso por praticar atos obscenos com outro homem mais jovem, Valentin (Raul Julia) é um ativista político, provavelmente encarcerado pela prática de outro tipo de ato obsceno durante um governo militar: a defesa da liberdade. 

“O Beijo da Mulher-Aranha” (Brasil / Estados Unidos, 1985), em cartaz no Globoplay e no Belas Artes à lá Carte, não especifica qual país a história se passa, mas foi gravado no Rio de Janeiro, no Brasil, no final do governo militar. O diretor, o argentino naturalizado brasileiro, Hector Babenco, tira desses símbolos a força para tornar seu filme tão visceral, emotivo e sensível. 

A aproximação entre Molina e Valentin é feita de maneira muito cuidadosa, já que ambos possuem personalidades e histórias de vida praticamente opostas. Molina é naturalmente sensível, romântico, ignorante em relação às causas políticas. Ele, inclusive, reforça o tempo todo que “odeia política”. 

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Se Valentin é um tipo bruto que dá a própria vida por um ideal coletivo, o bárbaro do encontro dos dois é justamente a identificação de pontos em comum. 

Ambos são condenados por defesas básicas. Ambos tem sonhos, paixões e anseiam a liberdade. Em terrenos diferentes, Molina e Valentin caminham em uma mesma direção. 

Para fugir da realidade da prisão, Molina investe horas do seu dia recontando a sinopse de um filme nazista que viu anos atrás. Ele não se interessa pela trama política, pela crítica, mas pelo romance entre a dançarina francesa Leni Lamaison (Sônia Braga) e o alemão Werner (Herson Capri) 

Se inicialmente Valentin rejeita à narração de Molina, depois ele passa a ser embriagado por ela, pelo modo magnético com que Molina conta a história. Numa espécie de Sheherazade – a heroína do livro As Mil e Uma Noites – às avessas, Molina evita a condenação de ambos através de tramas melodramáticas, pueris e escapista.

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A amizade entre os dois floresce. E Babenco tece um filme dentro do filme para reforçar a força do próprio cinema como um elemento de formação e libertação cultural, mas também como um espaço reservado para os sonhos. 

Cheia de vigor, sua direção esmiuça o roteiro de Leonard Schrader (irmão do premiado roteirista de Taxi Driver, Paul Schrader) atrás de referências que ampliem o poder imaginativo das cenas. Eu vi citações de clássicos do cinema americano como ‘A um passo da eternidade’ (a cena final na praia), ‘Testemunha de Acusação’ (a trama de Leni na Alemanha nazista), Cinderela (quando a Mulher-Aranha acorda Valentin com um beijo) e até ‘Casablanca’. 

O filme dentro do filme também serve para iluminar as memórias que ambos os protagonistas tem da vida. Se Molina, em dado momento, se deixa levar pela paixão impossível de Leni com o alemão, ele também assume a forma da dançarina francesa como seu alter-ego. Valentin faz o mesmo ao narrar seu romance interrompido com Marta, também vivida por Sônia Braga. 

O compartilhamento das histórias de ambos, reforçado pelas interpretações da mesma atriz, ajuda na identificação, tanto do público quanto dos próprios personagens. A fotografia cheia de sombras e cores impulsiona a força da representação de uma história dentro da história dentro da história, como um sonho de fato.

Babenco vai além. Usa atores brasileiros em quase todo o elenco para destacar o lado lúdico da representação, sem descuidar do tenso momento onde o filme fora feito. O fato dessa história passar em um lugar tipicamente brasileiro, sem que haja um tipo de artifício para maquiar os locais, torna a crítica do diretor em relação encarceramento militar ainda mais forte. Não importa onde a história passa porque as injustiças e privações da liberdade não devem ser julgadas pelo país onde acontecem. A liberdade é uma pátria universal. 

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‘O Beijo da Mulher-Aranha’ ainda cria uma trama de transformação, onde seus personagens, o sentimento e a ligação entre eles faz com que suas histórias sejam mudadas para sempre. 

William Hurt, em um dos raros trabalhos a levar o Oscar e o Festival de Cannes no mesmo ano, tem uma brilhante interpretação. Ele está livre de caricaturas, de distrações. Sua doçura e jovialidade, escondidas atrás de formas tão masculinas, é um contraste poderoso a figura suja e desleixada de Valentin. 

Mas o próprio Valentin também guarda gentileza e cumplicidade dentro de um peito tomando pela paixão ativista. 

A interseção entre eles é desnudada pelo afeto, pela parceria e pelo amor. Sim, o amor. Ele até pode ser um elemento primário nas histórias de fantasia, nos contos de fadas infantis que fazem as mocinhas suspirar atrás dos mocinhos. Em ‘O Beijo da Mulher-Aranha’, a fantasia e a paixão não são a anti-realidade, ou a forma de apaziguar a dor do sofrimento de Valentin e Luis Molina. Especialmente ao final, quando temos Molina lutando por uma causa enquanto Valentin busca paz em sua imaginação. 

As grades desta prisão são maiores do que barras de ferro e uma porta quase intransponível. Ambos estão presos a um sistema, a um julgamento, a uma impossibilidade, a uma ausência de companheirismo ou liberdade. A prisão que uniu esses dois homens é também o lugar onde eles se libertam. De algum modo, acima de qualquer sistema, a fantasia se garante como fio essencial para tornar a miséria da vida menor e fazer qualquer história ser possível.

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