6 contradições do maior festival de inovação do mundo

As contradições escancaradas no SWSX 2022

Estive recentemente no SXSW, maior festival de inovação do mundo em Austin no Texas. Pela primeira vez, fui em um evento desse tipo sem um foco específico, sem uma ambição corporativa, uma meta de negócios, pressão para fazer networking, fechar novos negócios, apresentar um case, etc. Tive o privilégio de ir “simplesmente” para abrir a cabeça, escutar sobre novos temas, absorver referências novas e aprender com gente que pensa diferente.

Aprendi muito nesses 9 dias insanos de festival, e aprendi principalmente com as (muitas) contradições que emergiram. Os grandes temas estão sendo criticados de forma aberta, inteligente e consistente nas sessões. As provocações vem de pessoas de distintos backgrounds e idades em quase todas as sessões (que sempre tem um ótimo espaço para perguntas ao final).

Como sociedade, temos muito o que aprender com a discordância, com as reflexões e críticas de temas que muitas vezes nos são vendidos como solucionados. Abaixo 6 das contradições que o festival evidenciou e que, para mim, são a faísca para aprofundamentos necessários:

1) Euforia com o Metaverso e Web3 vs. Impactos em saúde mental e física

É impressionante a quantidade de empresas e mentes brilhantes que estão dedicadas à soluções nos novos ambientes da Web3. O mercado não só já existe e movimenta alguns bilhões como provavelmente deve crescer exponencialmente no curto prazo.

Em todas as sessões sobre Web3/Metaverso houveram perguntas e provocações sobre o que as empresas que lideram esse movimento estão pensando sobre os possíveis impactos em saúde mental e até mesmo física dos usuários. A preocupação da audiência é clara e também é claro o despreparo das big-techs no tema. Ao parecer, não existe preocupação genuína com os problemas que as soluções imersivas podem gerar na psique humana. Toda a atenção é direcionada à se posicionar o mais rapidamente nesse novo ecossistema digital e ganhar escala com algum produto/solução que seja adotado globalmente. No mínimo perigoso para os usuários

2) Evolução para matriz energética global mais limpa vs. dependência de combustíveis fósseis e falta de tecnologia

Com o objetivo de ter um mundo carbono-neutro até 2050, o mundo já entendeu que precisa urgentemente de uma evolução da matriz energética reduzindo as fontes de combustíveis fósseis e aumentando o share de matrizes mais limpas como eólica, solar, hidrogênio, nuclear, etc.

O problema é que a urgência para migrar tem feito muitos especialistas se darem conta de que não estamos ainda nem próximos de ter a tecnologia necessária para fazer essa mudança a tempo de atingir as metas. Especialmente em um contexto de guerra Rússia-Ucrânia e consequente crise mundial de petróleo e gás, a situação fica especialmente mais complexa.

De forma realista, a tecnologia disponível hoje não é capaz de suprir a demanda global de energia de forma limpa. Infelizmente, para que a transição ocorra, por um bom tempo ainda vamos precisar utilizar fontes como o Gás, que apesar de ser um combustível fóssil, tem menos impactos que o petróleo Diferentemente do Metaverso, não temos gente suficiente se dedicando a avançar no tema de forma rápida. O que por si só é uma outra contradição bastante interessante: temos mais interesse em construir um mundo virtual paralelo do que em salvar o planeta de uma destruição provável? Até onde entendi, o mundo virtual do Metaverso não salva a Terra.

3) Euforia com veículos elétricos vs. Impacto ambiental indireto das baterias e desejo por mais carros

Veículos elétricos já são uma realidade e a Tesla já tem concorrentes de peso que vem ganhando escala mundial (muitas empresas asiáticas vem assumindo posições de liderança na indústria). A proporção de veículos elétricos vendidos não para de crescer e a cadeia de produção que antes era precária, começa a se tornar mais robusta em todo o mundo.

Apesar de parecer uma solução bastante evoluída e alinhada com a transição da matriz energética, sustentabilidade e metas carbono-neutro, os electric-vehicles (EV’s) tem enormes impactos ambientais indiretos na sua produção, especialmente por conta das baterias, que representam de 35% a 60% do preço destes automóveis. Já aprendemos também que não temos Lítium suficiente para produzir tantas baterias. O metal é o principal componente para o funcionamento das baterias utilizadas e extraído de países como Chile, Bolívia e Argentina que vem sofrendo graves impactos ambientais por conta dos processos de mineração envolvidos para a extração.

Carros elétricos sempre tiveram a fama de “bonzinhos” mas a verdade é que eles também são um pouco de “vilão” na história. Os preços do Lítio não param de subir, ainda não sabemos o que fazer com o descarte de milhões de baterias e continuamos penalizando países mais pobres que extraem o metal com impactos ambientais incalculáveis pela mineração massiva.

4) Inovações incríveis das Big-Techs que trazem mais praticidade vs. queremos mesmo automatizar nossa vida?

Me marcou bastante a apresentação de um responsável pelas soluções de voz (Alexa, Siri, Google Home, etc) de uma grande empresa de tecnologia. Foram 30 minutos apresentando a visão de futuro do produto com evoluções que serão capazes de entender, prever e antecipar nossas necessidades por meio de algoritmos e com isso fazer compras, agendar compromissos, enviar mensagens por nós, etc. Simplesmente impressionante.

Os outros 30 minutos da apresentação foram basicamente respondendo à “alfinetadas” em uma sessão de perguntas quase todas direcionadas aos impactos de tanta praticidade e automação. Será que queremos uma vida onde ficamos em casa e uma máquina/empresa realiza quase todas as atividades por nós? Quais os impactos em saúde mental disso? O que vamos fazer com tanto tempo livre?

Uma das melhores perguntas da sessão veio de um senhor de seus 55 anos que começou dizendo algo do tipo: “Não tenho nenhum problema com a tecnologia, ela é simplesmente incrível. Eu tenho problema em conceder tanta informação e poder de decisão sobre a minha vida para uma empresa que tem como objetivo final crescer e obter mais lucro, e que não tem a minha felicidade e bem-estar como prioridade”. Pensemos nisso.

5) Avanços na conquista espacial vs. Ainda não sabemos lidar com um único planeta

A conquista do espaço é realidade. Escutei de vários profissionais dedicados unicamente a pensar cápsulas de sobrevivência subterrâneas em Marte, alimentação saudável no espaço, equipamentos de musculação para astronautas, design e decoração de espaçonaves e até soluções de primeira classe para viagens turísticas a outro planeta. Isso tudo já existe.

O que também existe é um incômodo desconfortável sobre a nossa incompetência descarada em cuidar e manter o planeta Terra. Escutei mais de uma vez de especialistas de distintas áreas o termo “extinção humana”. O risco é real e se tornou uma das justificativas para as investidas ao espaço. Não conseguimos ainda desenvolver soluções decentes para problemas reais do Planeta Terra (aquecimento global, fome, guerras, etc) e aparentemente estamos a ponto de levar os mesmo problemas para o espaço.

6) Sustentabilidade consolidada no discurso vs. Água ainda vendida em garrafas de plástico em todo o festival

Grandes empresas fizeram um bom trabalho em incorporar o discurso sustentável. O tema esteve presente em quase todas as discussões do festival de alguma forma ou outra. Algumas soluções vem sendo implementadas, mas claramente muito menos do que o que poderia ser feito e o discurso tem se tornado apenas mais um discurso muitas vezes.

Contraditoriamente, no maior festival de inovação do mundo onde muito se falou sobre sustentabilidade, milhares de pessoas tomaram água em garrafas plásticas durante 2 semanas, receberam dezenas de brindes de plástico inúteis das empresas apoiadoras do evento e ignoraram moradores de rua que conviveram como invisíveis ao lado da elite do marketing e tecnologia mundial pelas ruas de Austin. Mais uma vez, o discurso foi ótimo, a prática nem tanto

Saí do festival com mais perguntas do que respostas, inconformado com vários temas, curioso, pensativo, cansado, frustrado com alguns temas mas também esperançoso com a forma aberta com a qual as contradições foram expostas no evento. Hoje temos muito mais espaço para provocar, criticar e expor falhas nas empresas, profissionais e movimentos que estamos envolvidos. Esse é o começo de um movimento que vai ser muito maior.

Não existe resposta fácil e temas tão complexos como sustentabilidade, saúde mental, futuro do trabalho, matriz energética e papel das grandes empresas. Sigo buscando mais contradições e sugiro que você faça o mesmo. Que as contradições sejam cada vez mais ditas e escancaradas no nosso mundo. Talvez assim consigamos evoluir nosso caminho como sociedade aqui na Terra para um lugar tão bom, que talvez valha a pena tentar “exportar” o modelo para outros planetas. Por enquanto, torço por mais esforços terrestres e um pouco menos euforia com a conquista espacial.

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