De volta aos clássicos: Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock

Com técnicas de cinema inovadoras, “Festim Diabólico” é uma referência de como criar tensão em cena e trabalhar subtextos.

Assim que “Festim Diabólico” (Rope, 1948) começa, um homem é estrangulado por Phillip (Farley Granger) acompanhado pelo cúmplice do crime, Brandon (John Dall). Os dois jovens matam David apenas por se considerarem intelectualmente superiores à vitima. 

Se a motivação do crime parece pouco tátil, ao longo do filme ela se transforma numa espécie de tese sobre o assassinato e, de alguma forma, mostra quanto o discurso elitista, cultural e social, desconsidera as projeções humanas. E isso vale tanto para um assassinato quanto para qualquer outro exemplo em escala menor. 

Livremente inspirado em um fato real, esse clássico dirigido por Alfred Hitchcock não está interessado em dissecar a motivação de um crime, muito menos em compreender o assassino. Mestre do suspense, Hitchcock cria um filme em uma tomada só: faz longos planos sequências com cortes invisíveis e leva a tensão da história a potência máxima. 

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Depois de matar o amigo, Phillip convida o pai de David, a tia, um amigo e a namorada da vitima para jantarem em sua casa. O corpo de David é escondido dentro de uma arca, justamente o lugar onde será servido o jantar. 

A proximidade dos elementos causa uma excitação em Phillip. E aí, Hitchcock aproveita essa estranheza para sugerir um envolvimento sexual entre Phillip e Brandon e criar um subtexto abertamente gay. Os elementos homoeróticos são magistralmente bem conduzidos adicionando uma camada extra para a motivação do próprio crime. Intelectualmente superior ganha mais contornos, triplica o contexto da morte de David.

O que os dois assassinos não contavam era que o último convidado da festa, o professor Rupert (James Stewart) seria um investigador nato. Em uma das cenas onde os convidados discutem sobre existir um tipo de permissão para assassinar outra pessoa, Rupert concorda com a tese de Phillip de que matar alguém intelectualmente inferior justifica o ato e, novamente, adiciona contornos ao termo “intelectualmente inferior”. 

“Festim Diabólico” se passa em um único ambiente. Pra livrar o filme de ser uma peça filmada, Hitchcock usa a câmera como uma espécie de espiã: seus movimentos precisos, meticulosos, desenham as reações dos personagens de forma perfeita, perfurando mais camadas no roteiro de Arthur Laurents, abertamente gay.  O humor inglês está nos símbolos, na peça que Brandon toca ao piano, no armário onde o corpo é posto, nos tiques de Phillip. Tudo é genialmente coreografado para arrancar o subtexto de uma trama aparentemente simples de mistério em uma causa moralista condenada até os dias de hoje!

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É uma direção tão inovadora que é copiada até hoje, mais de 50 anos depois. Dá pra dizer que “Festim Diabólico” foi pioneiro para que outros filmes filmados em um único ambiente, como a obra-prima, “12 homens e uma sentença” ( 12 Angry Men, 1957), de Sidney Lumet, pudessem existir. Pra mim, esses dois filmes parecem lados opostos de um espelho porque fazem uma radiografia de como nós enxergamos características civilizatórias como justiça, julgamento, poder e condenação. Ainda que eles estejam unidos diretamente apenas pelas técnicas de cinema, a narrativa de ambos co-existe dentro desse universo: quem pode julgar o que é certo, ou quem está realmente certo? 

Hitchcock explora as nuances do texto de maneira fria, direta, e ao mesmo tempo, faz a tensão – e o tesão, talvez – crescer até o final da história. O que é bárbaro na última cena é justamente por ela não oferecer uma conclusão maniqueísta. O tempo usado para construir a tese do crime perfeito, da execução aquém da motivação, culmina em uma melancolia existencial em vez de algo puramente moral. É um fim altamente metafórico e filosófico, uma vez que o professor Rupert, assim como Phillip, é defensor da teoria de Nietzsche sobre o homem que abdica dos valores comuns, tradicionais, é capaz de tudo.

“Corda” é a tradução livre do título original, “Rope”. Nesse caso, a adaptação brasileira criou um nome criativo, meio brega, mas ainda assim significativo. Festim pode ser visto tanto como uma festa suntuosa quanto por um cartucho de arma de fogo. Balas de festim, ao contrário, são inofensivas porque não possuem projétil. 

“Festim Diabólico” me parece ser a reunião apropriada de todos esses significados a não ser por uma detalhe: as situações mais diabólicas são puramente humanas. O inferno são os outros.

“Festim Diabólico” (Rope, 1948)

Onde assistir: Belas Artes à lá Carte, Apple TV Plus, NOW.

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