A origem da Criação em The Beatles: Get Back

O genial documentário de Peter Jackson é um poderoso registro de processo criativo.

John Lennon está atrasado para o dia de trabalho nos estúdios Twickenham, em Londres. O lugar seria o cenário onde os Beatles deveriam, em três semanas, compor 14 canções, gravar um álbum e fazer um filme. Paul McCartney pega o baixo e tira do ar alguma melodia. George Harrison, em sua frente, boceja. Ringo está distraído. Até que Paul canta “Get Back”, “Get Back”. George se anima e a cena corta para John se juntando ao grupo. É assim que um dos maiores hits da banda foi feito.

O flagrante é um dos vários momentos criativos mais sublimes de The Beatles: Get Back, documentário da Disney Plus +, produzido a partir de mais de 60 horas gravadas em 1970. O diretor do filme, Peter Jackson, teve a dificílima tarefa de compreender o material e encontrar a gênese de um fim. Os Beatles se separaram pouco depois da gravação.   

Para criar o recorte que desse conta da carga emotiva daquele tempo, Peter Jackson teve o cuidado de montar o filme na estrutura de saga e desenvolver a história a partir da definição de seu herói: Paul McCartney. 

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Naquele estúdio, Paul parecia ser o único interessado em manter os Beatles unidos. A criação de Get Back é quase um pedido de ajuda. Embora a música não tenha sido vista assim. 

Anos depois, John Lennon supôs que seria sobre ele. “Eu acho que há algo implícito sobre Yoko [Ono] lá”, disse Lennon. “Você sabe, ‘Volte para o lugar de onde veio.’ Sempre que ele cantava esse verso no estúdio, olhava para Yoko.”

Yoko não foi culpada de nada. O negócio era no andar de baixo. Era sobre voltar à origem, voltar ao lugar onde quatro amigos tocam o dia inteiro e se recusam a viver fora de qualquer lugar onde não exista melodia. Lembrar do tempo onde eles gravavam um disco inteiro em uma tarde, como foi com Please Please Me, tamanho o entrosamento.

Pra mim, o que Peter Jackson faz de maneira genial é entender o desespero de Paul em crescer. Em dado momento, ele reclama: “a gente precisa de uma figura paterna. Alguém que diga ‘ei, são 9h! Não se atrasem'”.
Olha a dinâmica do grupo: John estava com Yoko; Harrison, cansado de ser coadjuvante, testava seu talento em vários outros estilos e parcerias; Ringo iria gravar um filme. Depois de passar metade da vida juntos, da adolescência até próximo dos 30 anos, aquele era, inevitavelmente, um momento de ruptura pessoal. 

Em dado momento, George bate o pé, não volta pro estúdio. É super melancólica a cena onde John e Yoko saem do estúdio, Paul diz algo como “ok, vão transar” e depois começa a ter ideias com Ringo sobre o filme que fariam a partir da gravação do álbum. Uma das sugestões é fazer um programa de notícias urgentes intercaladas com as músicas da banda para, então, a última informação urgente ser a separação dos Beatles. Alguém pergunta sobre pressionar John para continuarem juntos. E Paul se despedaça: “e então restaram dois”. 

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As gravações ficaram arquivadas durante anos porque o próprio Paul não tinha boas lembranças do momento. Em sua cabeça, foi tudo tão tumultuado, cheio de rusgas, que não valeria a pena trazer isso de volta. Quando Jackson mostrou o material, a percepção dele e de Ringo foi outra. 

O documentário mostra o quanto o quarteto funcionava bem, o quão harmônico e familiar eles eram. No livro Paul McCartney: a biografia, escrito por Phillip Norman, também autor de uma obra sobre John Lennon, ele escreve que em determinado momento da gravação, quando o pianista Billy Preston se junta ao grupo, John sugere que ele seja o quinto Beatle. E Paul devolve: “não, se já é difícil com quatro”. 

No livro, a cena é descrita como uma alfinetada amarga. Até podia ser. No filme, a fala de Paul é cortada por gargalhadas de John, George, Ringo e do próprio Billy Preston, que passou pelo estúdio meio que de bobeira, e fez uma participação arrebatadora no disco. 

Essa diferença é importante para entender que mesmo sob uma tensão, sob alguma amargura, quando os quatro estavam fazendo música, a realidade deixava de existir. Eles se divertiram muito.

“Eu acho que eles dão vida a Londres”, diz um homem ao ser perguntado sobre a lendária performance da banda no telhado dos estúdios da Apple. 

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A ideia de se apresentar lá veio do engenheiro de som porque Paul não sossegava. Enquanto todos os outros três se recusaram a tocar em público, ele insistia, queria o final, o propósito daquelas horas investidas ali. Talvez, ele já previsse o fim e quisesse ter o último gosto do que o passado foi, o gosto da onda irresistível que levou os Beatles pelo mundo inteiro. E para este Peter Pan, fazer o show no alto significava tudo. Qual a diferença entre isso e voar?

Para o Paul, a impressão que passa é de que a música é um bicho. Tem que soltar, não pode ficar enjaulada no estúdio, no vinil ou no streaming. A música é feita pra celebrar, não para ser velada dentro de uma caixa. 

Paul é Música. E em sua Terra do Nunca, a realidade é uma palavra pesada e pequena, cuja serventia é apenas a de quebrar vidraças. 

Isso explica um pouquinho as razões de um homem de 80 anos com dinheiro o suficiente para comprar uma casa em Marte, sair em turnês mundiais, tocando para 50, 60 mil pessoas, em shows de três horas de duração. 

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Os Beatles cantam no terraço dos estúdios da Apple.

“The Beatles: Get Back” não é sobre Paul. Ele pode ser herói e vilão da saga, a depender da paixão de quem assiste, mas ele foi o primeiro a ver que a união de personalidades tão diferentes, tão amigas, tão magnéticas e revolucionárias, não aconteceria de novo. A vida tem dessas coisas, os amigos vão, outros ficam. O que você gostava de fazer antes vira um martírio depois de um certo tempo. Ali, a ruptura englobava a separação da adolescência para vida adulta, dos meninos para homens casados e pais, dos amigos para parceiros esporádicos, dos ideais românticos para as necessidades coletivas; da separação da dupla mais criativamente cósmica da música; de quatro músicos de Liverpool para verdadeiros mitos. 

É impressionante como toda a tensão, a falta de jeito e a guerra fria da primeira parte do documentário, em Twickenham, se desfaz com a magia da criação do álbum Let it Be, nos estúdios da Apple. A apresentação no terraço é um poderoso testamento musical e o maior e melhor flagrante do quanto os quatro se amavam. 

É brilhante ver como esses quatro egos coexistiam uns nos outros, como eles se alimentavam e criavam o melhor para a música, como o processo de criação era importante, intuitivo, mas lotado de referências. Preste atenção no quanto os ensaios são intercalados por eles tocando músicas dos outros, buscando conexão afetiva e criativa uns nos outros e uns com os outros.

George Harrison é o grande exemplo. Mesmo quando as composições não eram suas, ele trabalhava por elas, criavam momentos significativos e imprimia seu RG de maneira única. Solos e introduções simples na execução, mas complexos na forma. É assim em músicas como Don’t Let me Down, Get Back, Let it Be, e também em criações solos, como Here Comes the Sun e Something. E Ringo, sempre tão arquivado na memória dos fãs, é uma presença sereníssima, tão pendular que é capaz de filtrar a tensão dos outros três só de estar ali. 

Ainda que existam problemas, música sempre foi o centro, o motor, o motivo, o Universo. 

Uma das obras-primas criadas por Paul e John.

O desespero de Paul em manter este mundo vivo é o protagonista perfeito da saga genialmente criada por Peter Jackson. Quando voltam ao estúdio pra gravar o restante do álbum, os Beatles repetem Let It Be à exaustão. Ao ouvir que a versão ficou boa, Paul diz: “agora que temos a boa, vamos gravar de novo”. É quase um “não quero que isso acabe, gente!” Deixe rolar até que o mundo lá fora exploda. 

O trabalho de restauração de imagem e som, o critério poderoso da edição para encontrar a história na montanha de imagens e manter a sensibilidade na construção da história, é realmente extraordinário. Jackson maneja tão bem, que até a entrada de Alan Klein, o famigerado agente da banda que foi um tipo de pivô da separação, é bem feita. O diretor joga limpo com a plateia porque sabe que a emoção é genuína. Fora que seu documentário é o registro de processo criativo mais impressionante que alguém pode ver. Sobretudo, pela paixão do diretor pela música, pelos Beatles, por essa história que mudou a cultura do mundo e segue abrindo influência mais de 50 anos depois. 

Jackson consegue o feito, depois de quase 8 horas de filme, encerrar a terceira parte deixando o espectador sem fio de esperança: então é isso mesmo? Acabou?

Sim, acabou. E foi arrebatador.

E o que nos resta, senhoras e senhores, é ficar com os anfitriões da noite, os Rolling Stones. 

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