Entrevista: Lourenço Mutarelli & O Livro dos Mortos

Entrevistei uma pessoa que morreu: Lourenço Mutarelli, 58 anos – autor, escritor, desenhista e ator.

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O Livro dos Mortos

É tarde de terça-feira na cidade de São Paulo.
Caminho pela Vila Mariana. A temperatura caiu muito nesse mês de agosto.
Paro em frente a um prédio e toco o interfone.
O porteiro me anuncia.
Estou indo entrevistar uma pessoa que morreu: Lourenço Mutarelli, 58 anos – autor, escritor, desenhista e ator.

Mutarelli morreu há alguns anos; teve um infarte e ficou alguns minutos desconectado de seu corpo. No entanto, voltou; segundo ele mesmo – retornou fraturado, dividido. Voltou para continuar contando suas histórias.

Inclusive, está lançando no final do mês – junto à editora Companhia das Letras – seu novo romance: O LIVRO DOS MORTOS.
Eu vim até a sua casa para falar da sua nova obra. Tive a honra de receber o texto para ler antes dessa entrevista.

Vim tomar um café com o ex-morto.
O café é excelente. A conversa, melhor ainda.

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Mutarelli, O que é o LIVRO DOS MORTOS?

É minha autobiografia hipnagógica. É um processo da minha insônia. É um processo que ninguém vê quando tem contato com meu trabalho, mas – no meu processo criativo – eu começo a colar recortes, transformo os recortes em pintura, modifico a pintura para uma escrita compulsiva, essa escrita vai virando imagens e chega em lugares.

É aqui que atinjo nas minhas alegorias. Meus cadernos são essenciais para o meu trabalho.
Eu descrevo em detalhes minha insônia nesse livro. Eu chego em um espelho d’água. Nunca consigo mergulhar no sono. Eu durmo quatro horas por noite, isso me faz muita falta. Sempre bato e volto. Então, quando estou quase dormindo eu tenho sonhos lúcidos. Eu quase controlo os sonhos. Dou forma a eles. Daí eu fico nesse estado transitório, me perdendo e não durmo. Então eu volto. Sempre três da manhã. Daí eu acordo e fermento o pior de mim. Vou anotando tudo.

Este livro foi assim. Este livro é um passo seguinte ao GRIFO DE ABDERA no qual eu comecei a me misturar muito mais com minha obra. O LIVRO DOS MORTOS é sobre isso. É uma obra na qual minha realidade se mistura com os sonhos que eu não lembro completamente. É um livro sobre quem não dorme direito e não acorde direito. É um livro sobre o irreal.

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Você dedica este livro para um médico e sua equipe. Acompanhamos em suas redes sociais e entrevistas que você teve um grave problema de coração. Qual a conexão deste trabalho com esse momento da sua vida?

O LIVRO DOS MORTOS estava pronto quando eu morri. Ele estava descansando com apenas alguns ajustes a serem feitos. Eu estava reformando meu apartamento. Estava pintando cômodos e estava me sentindo bem. Aí eu infartei e morri. Na verdade, eu morri infartando duas vezes nesse dia. Foi no auge da pandemia, sem vacina. Eu fui parar no hospital lotado. Estava com muita dor. Convulsionei e fiquei dois minutos morto.

Depois, ressuscitei e morri de novo ficando um tempo maior falecido dessa vez. Quando eu voltei da morte, no hospital, mandei uma mensagem para minha editora dizendo que o livro estava pronto e que, caso eu morresse de novo (definitivamente), eu gostaria que incluíssem meu prontuário médico e meu atestado de óbito – que seria o melhor fim que este livro poderia ter. Não morri. Voltei. Quando eu voltei pensei que precisava também voltar ao livro. Daí eu recomecei a trabalhar no texto.

Sabe, nada me garante que eu voltei de verdade. Eu tenho bebido demais, fumado demais, tomado muito remédio. Eu não sei mais o que é real. O que aconteceu ou não. Minhas lembranças… eu comecei a achar que tudo é possível. Agora tudo é possível. Eu não sei realmente se eu encontrei minha família mesmo.

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(faz silêncio por um tempo).

O livro estava pronto. Eu morro, ressuscito e volto a trabalhar nele. Começo a adicionar elementos. O livro cresce. As notas de rodapé vão aumentando no livro. Eu amo notas de rodapé. Eu adoro me descolar pelas notas de rodapé dos livros. Antes da minha morte, o livro tinha algumas notas de rodapé, mas depois eu adicionei muito mais. Foi quase uma necessidade autobiográfica de deixar um registro de todo conteúdo (literário, teatral, cinematográfico, musical etc.) que foi importante para mim durante a vida. Eu comecei a gostar dessa leitura complementar no rodapé.

Eu venho me doando muito nesse livro. Essas notas de rodapé são de coisas muito importantes na minha vida. É um registro. No começo do livro as notas não têm muita conexão, depois elas vão se juntando com mais sentido.

O LIVRO DOS MORTOS, como você definiu é sua “autobiografia hipnagógica”. Mas ele possui algo de fantasioso também. Tudo que lemos no livro se passou mesmo com você? Ou você não sabe por que não consegue mais discernir – depois da sua morte – o que aconteceu e o que não aconteceu?

Eu não tenho certeza.

(silêncio)

Eu não sei se aconteceu exatamente daquele jeito que eu narro. Eu já repeti as histórias que conto no livro para amigos, familiares, psicólogos e tanta gente que elas viraram alegorias. Agora me ocorre que tem muito a ver com A CAIXA DE AREIA. Que é um espaço de HQ onde eu exercito essa questão das memórias, das lembranças, de afetos autobiográficos. Mas acho que a CAIXA DE AREIA é mais uma auto ficção (apesar de que na época eu não sabia o que era isso).
Eu escrevi O LIVRO DOS MORTOS bebendo muito e dormindo pouco. Fica fácil de confundir as coisas.

Você diria que além da CAIXA DE AREIA e O LIVRO DOS MORTOS o seu livro A ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA também possui nuances autobiográficas?

Eu preferia dizer que não, mas é.

Tem episódios lá que eu vivi e joguei como se fosse da personagem principal. Coisas bastante bizarras. A ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA é meu primeiro livro em terceira pessoa. É o primeiro livro que fiquei um ano trabalhando nele. Faz parte da época em que fiz um mergulho intenso na obra do William Burroughs.

Aliás, William Burroughs tem um livro maravilhoso que é uma inspiração para o LIVRO DOS MORTOS também (ele está, inclusive, citado no rodapé) que é o “My Education”. É nesse livro que o Burroughs narra como os sonhos foram importantes no trabalho dele. Como muito do que lemos nos seus livros veio de um plano onírico.

Eu fiz muito isso no meu livro novo: trouxe imagens da minha insônia, memórias confusas do meu sonhar. Misturei com o que produzo nas minhas colagens, nos meus cadernos, na minha escrita compulsiva.

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Além do William Burroughs, outra figura que você diz que te influenciou foi Franz Kafka. Seu livro novo é bastante “kafkiano”, certo? Eu, inclusive, acabei de ler um trecho no qual a personagem está numa fila pegando um número para ser atendido que me lembrou demais algumas passagens de O PROCESSO.

Kafka é perturbador. Eu adoro a obra dele. Foi o autor que me levou a gostar de ler e escrever. A METAMORFOSE é uma obra chave na minha vida. Eu leio Kafka – assim como leio William Burroughs – e me identifico demais com tudo que se passa ali. Quando eu li A METAMORFOSE eu pensei “esse cara escreveu isso pra mim”. Eu até tinha ciúme de ver alguém lendo o livro.

Nosso cotidiano é um inferno. É um texto do Kafka. É um absurdo muito grande. A gente vive imerso em senhas, burocracias, a necessidade de provar o tempo todo que nós somos nós mesmos, cobranças de estranhos em redes sociais e por aí vai. Acho que a obra do Kafka nunca foi tão atual com o momento que vivemos.

Eu estou com um problema de abertura de empresa porque perdi um documento e não consigo provar que eu sou eu. No entanto, pessoas acessam meu email de outros países, clonam meu cartão e se passam por mim. É insano. Eu não sei mais quantos eu sou.

Pompeu, a personagem principal ganha a vida contando histórias. Muitas delas são histórias do cotidiano. A realidade supera a ficção?

Muito.
Muito.
Acho que sempre superou em termos de absurdo.
A pandemia foi isso.
As redes sociais são isso.
É muito chocante o que as pessoas fazem na internet. Se você contasse em um livro ou filme seria considerado inverossímil.
O Pompeu é recluso. É um confinado. É um pouco de mim. É um pouco do absurdo que mora em mim.

A capa de um livro é uma parte muito importante no acesso ao universo proposto pelo autor. O que a capa do LIVRO DOS MORTOS nos narra?

A capa é fundamental. A capa do LIVRO DOS MORTOS narra algo sim. Inicialmente teríamos um encarte colorido com referências, mas deixamos de lado. A capa é parte essencial da construção ficcional do livro. A capa é parte do processo criativo do livro. Ela é parte do meu processo de escrita que começa com colagem, vira pintura e vira escrita compulsiva. Ali tem um mosaico de ideias para você entrar na atmosfera do texto. A capa é do que eu me alimento.

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O que é mais difícil? Começar ou terminar um livro?

Começar eu começo. Eu tenho várias pequenas ideias e consigo ter um termômetro. Mas terminar é complicado demais. Terminar é a mistura exata de vazio e realização. As coisas não saem de mim. É terrível. Foi muito difícil me despedir do LIVRO DOS MORTOS. É doloroso, mas é também um alívio.

Depois de publicados, você lê seus livros?

Eu leio algumas vezes durante o processo de publicação, mas quando ele chega impresso eu pego, sento, tomo um whisky e vou lendo. Aí é minha despedida mesmo. Eu só leio essa vez e nunca mais. Só uma e fim.

A única vez que eu reli um livro meu foi o ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA. Eu tinha ido para Portugal para o lançamento do livro por lá e um jornalista foi me entrevistar. Eu pedi para falar no dia seguinte porque não me lembrava de detalhes do texto. Daí eu fui para o hotel e reli.
E eu não consigo reler meus livros porque tenho muita coisa para ler. Eu quero ler um monte de livros e não quero “perder tempo” lendo o que eu escrevi.

Qual é uma música que serve de trilha sonora para ser ouvida com a leitura do LIVRO DOS MORTOS?

No fim do livro, a personagem Pompeu está numa festa e pede para que coloquem uma música. É uma música estranha, como é o livro. Essa é a música do livro. É melancólica e uma gravação antiga. Cheia de chiados. Essa é a música. Quem ler o livro vai saber.

O LIVRO DOS MORTOS chega no final de agosto nas livrarias e para quem comprou na pré-venda. Depois dele, o que vem por aí com o “selo Mutarelli de qualidade”?

Eu pretendo fazer algo menos louco, mas não sou eu que decido. É um bicho que mora em mim. Tenho vontade de voltar com algo naturalista como A ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA, mas foi tão prazeroso escrever algo surrealista como O LIVRO DOS MORTOS que… não sei.

Agora estou gravando um filme que não posso falar muito. Um filme que sou um pastor evangélico escroto.
Algumas coisas me fascinam muito.
Eu tenho colecionado citações sobre dormir e sobre a insônia.

O meu trabalho é meu tratamento. Meu trabalho não é consciente. É sem controle.
Eu tenho a sorte de ter gente que gosta do que eu escrevo. Não é por vaidade. Eu saio melhor a cada livro.
A única coisa que eu sei é que meu próximo livro começa com a última frase do LIVRO DOS MORTOS: “parece que chove”. Não é um spoiler, mas é um “me parece”. Tudo me parece. Eu não quero continuar o livro, mas recomeçar dali. Algo assim.

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