O novo surrealismo

A tecnologia e a ressaca da pandemia resgatam o apreço pelo surreal

Quando a realidade se torna insuportável, recorremos à fantasia para nos reconfortar. Foi assim que o surrealismo se fortaleceu como movimento artístico a partir de 1924, ascendendo das cinzas de um pós-guerra, de uma crise econômica e da pandemia de gripe espanhola. Os surrealistas, como Salvador Dalí ou Max Ernst, defendiam que a arte deveria libertar-se das exigências da lógica e ir além da consciência mundana, procurando expressar o mundo do inconsciente e dos sonhos. 

O contexto que germinou o surrealismo nos soa amargamente familiar. Passado um século, estamos vivendo um novo momento histórico que nos faz implorar por um escape da realidade. Novas guerras, nova crise econômica e uma nova pandemia nos deixam novamente em busca de momentos fantásticos e imaginativos. Mas, enquanto a ferramenta de expressão do século passado era a pintura e a literatura, hoje temos um arsenal tecnológico capaz de levar estas experiências para além dos limites artísticos. Com a inteligência artificial, o surreal se torna real e entra em nosso cotidiano em forma de estética, conteúdo e entretenimento. A estas vivências oníricas potencializadas pela tecnologia eu apelidei de “novo surrealismo”.

O maior exemplo desse retorno do surreal ao mainstream são as imagens geradas por inteligência artificial que muito rapidamente tomaram conta da internet. O Dall-E 2 (que não coincidentemente tem esse nome como homenagem à Salvador Dalí) é um dos mais conhecidos programas de inteligência artificial que cria imagens a partir de descrições textuais. Ele pode criar desde imagens realistas (como a imagem de uma bicicleta) até coisas fantásticas (como uma alface dirigindo uma bicicleta). Muitas destas criações artificiais reproduzem uma estética digital pra lá de surrealista. Afinal, são imagens produzidas por “alguém” sem nenhuma censura pessoal, ética, estética, artística e nenhum compromisso com a realidade, bem como defendiam os surrealistas. Muitas destas imagens provocam sentimentos perturbadores e, por isso mesmo, estranhamente atraentes.

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Imagem gerada pelo Dall-E 2 à partir do texto: Uma alface dirigindo uma bicicleta.

O Dall-e 2 foi lançado em Abril deste ano, ficou um período restrito a poucos usuários e agora está disponível para todos que queiram testá-lo. Mesmo com o acesso restrito, as imagens digitais dele e também de outras inteligências artificiais como o Midjourney ou o Stable Diffusion já estão por toda parte, desde clipes do David Bowie recriados com IA até a trend de reagir às imagens de AI no TikTok.  Em meio à discussões sobre plágio e direitos de propriedade intelectual dessas criações digitais, muitas marcas já estão usando a criatividade artificial para compor suas campanhas. A Warren, por exemplo, aproveitou o MidJourney para ilustrar os sonhos dos seus clientes em uma campanha que bebe diretamente deste novo surrealismo.

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Campanha da Warren com imagens do Midjourney

Paralelamente a esta enchente de imagens digitais, as cores vibrantes e formas ousadas tomam conta da moda, design e arquitetura da Geração Z. No report Cultura Jovem 2022, a WGSN cunhou o termo “estética do absurdo”, se referindo a um conjunto de novas estéticas que abraçam uma noção mais desinibida de auto expressão. Na medida que as imagens de inteligência artificial se popularizam, ela deve se misturar com este maximalismo e tornar-se onipresente na estética digital.

Mas, para além da estética, é de se esperar que a inteligência artificial, a realidade aumentada e o tão afamado metaverso tragam experiências fantásticas para dentro do nosso cotidiano, com produtos e serviços que esticam os limites do que é possível e impossível. Já existem, inclusive, startups que prometem imortalidade através de um avatar que reproduz nossa aparência, nossos movimentos, nosso tom de voz e expressões habituais.  

A verdade é que seja com imagens artificiais, com o maximalismo na moda ou com tecnologias imersivas, a fuga da realidade é o novo normal. Como especialista em marcas, vejo grandes oportunidades para a indústria da moda, do conteúdo, do entretenimento e da propaganda se alimentarem de referências deste novo surrealismo para criar experiências cada vez mais surpreendentes e imersivas para esse consumidor ávido por um escape. Como ser humano, me pergunto se a fuga da realidade é realmente mais eficaz do que torná-la um pouco mais suportável. 

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Mais referências sobre o novo surrealismo na Newsletter Nós da Cordão #32.

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