Em busca da superoriginalidade

Superoriginalidade é aquele “sei lá o quê”, como diriam os franceses. É algo que pode estar na trama, no olhar da personagem, no “timing” em que a história foi publicada, no conjunto da obra. Seja o que for, tem olheiro procurando isso por todos os lados.

Meus olhos se encheram de lágrimas ao ver amigos e artistas brilhantes novamente apresentando seus trabalhos para o público. Na última semana ocorreram a CCXP, maior – e mais impressionante – convenção de cultura pop do mundo, e a Butantã GibiCon, evento gratuito e independente de quadrinhos sediado no bairro com mesmo nome. Ambas aconteceram fisicamente pela primeira vez desde o começo da pandemia, e foram dois anos de lives, promoções, metaverso e muito conteúdo interativo para conter a ansiedade.

Dei a sorte de poder visitar as duas num intervalo de quatro dias – e aqui deixo os meus parabéns e o meu obrigado aos organizadores, pois foram experiências incríveis. Apesar das diferenças de propósito e de investimento, ambas bebem de uma mesma fonte: a superoriginalidade. E os criadores que participam, visitam, colaboram ou são homenageados nesses eventos são responsáveis por isso. Daí minha inspiração para refletir sobre esse assunto.

Quero falar sobre a faísca que acende o fogo do mercado de mídia e entretenimento, que só em 2021 movimentou US$ 2,2 trilhões, incluindo todo tipo de formato. Criadores (roteiristas, desenhistas, streamers, cineastas, dramaturgos, gamers, coreógrafos etc) e criações que se destacam geram o motor da indústria e inquietam muitos líderes do mercado na busca por conteúdos que se tornem “hits”.

No Brasil, dizemos que todo mundo é um pouco técnico de futebol, ainda mais quando se trata da Seleção Brasileira. Todo mundo tem uma crítica, um pitaco ou uma solução para ganharmos a Copa, e, mais ainda, uma opinião de por que perdemos a última. Nós somos os melhores “engenheiros de obra pronta”, ou, como adoramos dizer, “advogados do diabo”, principalmente se for pra dar pitaco em alguma história – porque, nesse caso, independente do formato, somos especialistas desde o útero e, por isso, ainda mais pitaqueiros. Quando um criador (contador de histórias) se propõe a colocar sua criação no mundo, sabe que, inevitavelmente, será julgado por especialistas e pela massa.

Sinceramente, acho isso bom, pois é a melhor forma do conteúdo sobreviver ao “darwinismo” da economia de atenção: conseguir passar da ideia à publicação é um feito por si só, e ainda passar pelo crivo da audiência, atingindo seu potencial máximo de alcance e rendimento, vira uma tarefa hercúlea. Em um mundo tão lotado de conteúdo, a tendência é não deixar que nada mais ganhe vida, motivo pelo qual os streamers têm apostado mais em “re-runs” do que em novos projetos.

Quando nós, humanos que buscamos padrões em tudo, somos impactados por algo diferente, que nos surpreende, temos uma sensação única, um tipo de alerta. Se a coisa é ruim, logo a descartamos (sobretudo atualmente, com a dispersão de atenção devido à avalanche de ofertas de conteúdo). Se, por outro lado, é boa, esse sentimento nos eleva, essa coisa que não sabemos o que é, que nos encanta e que nos faz querer ver mais e mais. Pode ser uma música que nos deixa cantando como se fosse uma velha conhecida, um filme que acaba e não nos deixa levantar da poltrona, ou um livro que nos engole e não conseguimos largar.

Isso é superoriginalidade.

Eu choro – de sair lágrimas dos olhos mesmo – quando isso acontece. É como se eu estivesse vivenciando o melhor que a humanidade tem para oferecer. Fico emocionado com a capacidade de alguém para criar algo tão sublime ou tão espetacular. Às vezes é só uma palavra em um poema, às vezes, uma pausa entre algumas notas musicais, ou um simples “plot twist” em uma história. Seja o que for, transforma o mundano em algo extraordinário. E essa é a busca.

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Estudo de campo : minhas filhas na CCXP e na Gibicon com olhar atento em busca da superoriginalidade em cada criação.

Tanto na Casa de Cultura do Butantã quanto no São Paulo Expo, na Imigrantes, eu pude sentir tudo isso pessoalmente mais uma vez. Em cada mesa, em cada livro, em cada fanzine. Em cada sticker, poster, fan-art, marcador de livro. Em cada action figure, filme, estande de streaming, produto licenciado. Estava tudo ali, ou pelo menos poderia estar. Dos artistas independentes aos executivos de canais, todos na busca constante pela superoriginalidade, porque sabem que é disso que são construídas (ou destruídas) as carreiras.

Volto a frisar o que já falei antes: não se trata apenas da qualidade do desenho, do alcance da distribuição ou da presença de uma celebridade no papel principal. Superoriginalidade é aquele “sei lá o quê”, como diriam os franceses. É algo que pode estar na trama, no olhar da personagem, no “timing” em que a história foi publicada, no conjunto da obra. Seja o que for, tem olheiro procurando isso por todos os lados.

Estar em busca dessa superoriginalidade passa primeiro por consumir muito conteúdo – entender a história das histórias, entender de estrutura, entender dos movimentos artísticos e entender sobre o tempo em que estamos vivendo. E como diria Julia Priolli, da Amazon Studios, no podcast Pé de IP: prever um pouco do futuro também. A busca, no entanto, baseia-se principalmente em relacionamento, em estar perto de quem faz, estar de olho no que será ou não publicado, e mais do que isso, estar aberto para furar sua própria bolha.

Afinal, sem inclusão não há inovação.

Se para quem vive o mundo do entretenimento já é complexo encontrar essas pérolas, imagine para quem vive em outros mercados. Não é fácil encontrar superoriginalidade quando se está preso a um briefing, ou quando todas as ideias vêm de um só time. Longe de mim criticar estruturas criativas, ainda mais no Brasil, onde temos mais leões de Cannes do que estatuetas do Oscar, mas para encontrar algo realmente único temos que sair da nossa zona de conforto. Há uma grande dicotomia nesse ecossistema: criadores sem grana procurando formas de bancar suas histórias, e o mercado investindo em ideias que não encantam as pessoas.

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Uma dor comum: um lado o criador sofrendo para se sustentar, do outro um mercado inteiro precisando se renovar sem encontrar respostas.

As marcas, porém, poderiam incentivar essa busca, poderiam inclusive parear com criadores, explorando os direitos patrimoniais dessas histórias e criações e detendo parte dos direitos autorais. As marcas poderiam ter mais do que “product placement”, ou poderiam parar de interromper os capítulos de uma história; as marcas poderiam compartilhar um território com o criador e fazer parte do contexto, do roteiro, e assim fazer parte da mesma aventura que preenche a vida de quem gosta e segue esse tipo de conteúdo.

Nos dois eventos, Butantã Gibicon e CCXP, foi possível ver – em escalas diferentes – o embrião do que virá a ser o interesse do mercado no desenvolvimento desses profissionais. Se isso for feito com método, foco e constância, de modo “quase” científico, poderemos traçar metas para curto e longo prazo. E mais: a busca tem que ser feita em grupo, com parceiros de vários setores e especialistas em diversos formatos, afinal, todo mundo quer descobrir a próxima “Anitta” antes que ela atinja o topo da cadeia alimentar do sucesso.

Com investimento correto em criadores e suas Propriedades Intelectuais de Entretenimento, o Brasil pode se tornar uma potência no entretenimento global. Já sabemos que somos criativos, temos reconhecimento em vários setores – música, publicidade e até futebol –, então por que não podemos ser também relevantes globalmente no jogo da superoriginalidade? Não foi assim que a Coreia do Sul ganhou espaço com K-POP, ou antes disso os próprios norte-americanos com a trinca televisão, Coca-Cola e calça jeans no pós-Segunda Guerra?

Marcas, distribuidores, investidores e criadores, juntos, podem transformar nosso ecossistema em uma indústria potente – e sem perder a ternura. Para isso, devemos encontrar e investir cedo em nossas joias: nossas criações superoriginais. Que tal começar apoiando artistas nos eventos perto de você?

Basta deixar os olhos se encherem de excelência e encanto.

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