Pato na cama ou cachorro na panela?

1996, estava eu na rotina do escritório, quando meu chefe, um chileno com ascendência chinesa, bastante rigoroso no trato, me ordenou: vá à Ásia e faça um tour para conhecer o consumo de café solúvel por lá (minha ingrata tarefa era justamente aumentar o consumo dos cafés solúveis no Brasil, desafio hercúleo no país do coador de café. Aprender com esses países talvez nos ajudasse por aqui).

O périplo envolveria Filipinas, Japão e Tailândia.

Aos 26 anos, já havia viajado bastante, mas nunca para tão longe, nem para países de culturas tão diferentes. E ainda mais a trabalho, quando se tem todo um protocolo de etiqueta corporativa a respeitar.

Os preparativos para o embarque foram tão instantâneos quanto o café. Apenas 4 dias para me organizar e partir, com uma mala, um laptop e alguns conselhos sobre como me comportar em culturas tão diferentes ou, no bom português, cuidados para não dar gafe.

Já tinha passado uns mau bocados em Manila, cidade complicada, poluída, violenta, triste e com uma culinária sofrível, quando desembarquei em Bangkok.

Logo de cara aprendi que os Tailandeses eram muito corteses e até meio tímidos. Bastante formais, desculpavam-se por qualquer coisa, em parte por respeito, em parte porque queriam deixar uma ótima impressão na visitante, no caso, euzinha. Faziam de tudo para me agradar, a ponto de me deixarem constrangida por tanto rapapé. E o rapapé foi justamente o problema.

Logo na chegada, grande honra, fui convidada para um jantar pelo presidente da Nestlé local. Iríamos ele, eu e um petit comitê ao melhor restaurante da cidade e isso não era pouca coisa para uma fedelha corporativa.

Muito contente pela simpática recepção, e para ser gentil, perguntei sobre a especialidade culinária do restaurante. A resposta foi “cachorro”. Algo que eles faziam como ninguém na Tailândia, preparado por horas e horas em caldo suculento, motivo do sucesso do estrelado restaurante.

 

Eu me desesperei, disse que não precisava tanto, podíamos ir a um lugar mais simples, imagina, não queria dar trabalho. Nada adiantava. Era a escolha do presidente, aliás, seu restaurante preferido.

Entrei em pânico. A perspectiva de comer um cachorro me dava náuseas. Escolher outro prato não resolveria. E as tábuas da cozinha? E as facas? Tudo poderia ter passado pelo pobre cachorrinho.

Fui me aguentado durante o dia, como podia, até que não deu mais:
– Olha, eu sinto muito, mas tenho que dizer que pra mim é impossível comer cachorro. Não quero ofender, juro, mas é que no Brasil a gente trata cachorro como gente, tem casais que até os preferem no lugar de filhos. Há cachorros que dormem na cama com seus donos, recebem apelidos de gente, é cultural. Sabe vaca na Índia? Mesma coisa. Até pior.

Meu colega tailandês arregalava os olhos a cada exemplo dado sobre a relação cachorro-gente por aqui. Visivelmente surpreso, disfarçava o riso.

Não sei como a coisa se resolveu por lá, fato é que à noite fomos a outro local. Durante o jantar, lá pelas tantas, o presidente intrigado me pergunta sobre a cultura do pato no Brasil ou dõgui (pato mal pronunciado) como dizia meu outro colega, causador de toda a confusão.

Fiquei numa saia justíssima. Esclarecer minha crença de que o refinado presidente comia cachorros ou evitar a possível ofensa, deixando que pensassem que brasileiros são apaixonados por patos. Optei pela segunda alternativa, já temos tanta coisa esdrúxula no nosso país, mais uma não faria diferença.

Segui aliviada no meu jantar, saboreando um estupendo peixe branco à tailandesa. Até hoje me divirto imaginando a cena, nós brasileiros caminhando na rua com patos na coleira, adotando patos como filhos, dormindo com patos na cama.

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