Para ver no teatro: “Let’s Play That, ou vamos brincar daquilo”

Tuca Andrade retrata a vida e obra de Torquato Neto em espetáculo criativo e emotivo.

Existe um problema em contar a história de Torquato Neto: por onde começar? “Let’s Play That, ou vamos brincar daquilo”, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, vai pelo caminho mais torto, o recomeço. Aliás, torto aqui não quer dizer conflituoso ou difícil, e sim o mais puro, o mais comovido, o mais grudado nesse personagem da cultura brasileira, que sobrevoou sobre quase todos os acontecimentos do país durante a década de 60 até a sua morte precoce, aos 28 anos, em 1972. 

Criado e protagonizado por Tuca Andrada, conterrâneo de Torquato, o recomeço escolhido está ligado à história do próprio do ator. Um pouco antes da pandemia, passeando em um sebo de Recife, o artista encontrou “Torquatália”, uma antologia das obras do escritor e compositor,, organizada por Paulo Roberto Pires. Tuca fora magnetizado pela poesia do avesso, pelas músicas que iam do protesto à contemplação no mesmo verso; pela liberdade furiosa de um jovem que enxergou na cultura popular um modo maior de existir. 

Black and white photo of a smiling male performer on stage extending arms with a tank top and casual pants
Tuca Andrada

A paixão é a cola para ligar a obra de Torquato Neto, já que ele mesmo nunca publicou um livro em vida. Como colunista, escreveu crônicas recheadas de humor e sonho; criticou um disco de Ataulfo Alves, que rende uma das boas cenas do espetáculo; achou beleza até em slogan publicitário. Tuca remexe o caldeirão pra devolver Torquato à cena do Brasil de hoje. 

Faz diferença. Torquato Neto rodou em muitos ciclos, mas seu nome não tem a mesma quilometragem de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Titãs e Jards Macalé. Ele ainda permanece como um espectro. Sendo apresentado em 2024, destacando sua vivência durante a opressão e a resistência de 1964, Tuca absorve o espírito do personagem, espelhando épocas diferentes, mas com inquietações semelhantes. Os momentos onde as músicas do compositor ganham o corpo e a voz de Tuca, como na delicada “Minha Senhora”, gestam a sensação de que a “chegança” de um achou a parada no outro. Já “Geléia Geral” parece mais indignada. A direção musical evita soar óbvia, assim como as canções escolhidas. Ainda que “Marginália II” seja inescapável, fechar o espetáculo com ela cria uma fresta no tempo para ouvir o refrão com ouvidos novos. “Aqui é o fim do mundo”, mas o relógio do poeta marca todas as horas do fim?

Person throwing papers on stage with dramatic lighting in a theater performance

O ator divide a direção do espetáculo com Maria Paula Costa Rêgo. Ambos empurram o público para uma semi-arena coberta de papel amassado. Junto com o belo desenho de luz de Caetano Vilela, a encenação traduz tanto a obra, quanto o processo criativo para retratá-la e o ambiente onde tudo foi criado. É preciso ter claro na mente que o Brasil da ditadura amassava a nossa arte. Essa arena, portanto, ainda existe. Em cena, Tuca faz um trabalho de corpo impressionante. Dança, canta, declama e se move de um jeito anárquico, regendo a poesia de Torquato Neto como se ouvisse a melodia de um “coro de descontentes”. O texto de “Let’s Play That…”, dito de maneira apaixonada e polifônica por Tuca, foi escrito do mesmo modo. Muito mais do que um apanhado, o ator criou uma antologia cênica dos gestos de Torquato, da sua voz, dos seus medos, dos vícios, dos prazeres, dos amigos e dos ideais. 

A vida e obra de Torquato Neto não são separadas. A vida é a obra. “Let’s Play That, ou vamos brincar daquilo” resgata a alma do artista, seu ímpeto, sua provocação e lucidez que atravessaram ditaduras, pandemias, crises e que agora desembocam no palco, nesse coro dos descontentes. O que a arte pode fazer? Não deixar o volume desse coro diminuir. 

Receba nossos posts GRÁTIS!
Mostrar comentários (2)

This website uses cookies to improve your experience. We'll assume you're ok with this, but you can opt-out if you wish. Accept Read More