LA SAPE: uma análise sobre as camadas e os contrastes

O que um grupo de homens de Brazaville, República do Congo, tem a nos ensinar sobre manifestação cultural

O que um grupo de homens de Brazaville, República do Congo, tem a nos ensinar sobre manifestação cultural

Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes é o significado exato da sigla SAPE, que também faz alusão à gíria francesa “traje”. Definir os Sapeurs é um desafio, pois o contraste e as características específicas do grupo têm muitas camadas e significados.

A priori, quando você observa rapidamente este grupo de homens congoleses, a sensação mais comum é a de que se trata de uma colagem feita sobre outra imagem — que se destoa de todo o cenário, conjuntura e idiossincrasia da realidade desta população.

O contraste de cor e informação provocam um grande estranhamento a princípio e, após alguns segundos, é comum que você se encante e intrigue por aquilo que vê. É sobre essas sensações dúbias e altamente curiosas que essa análise se inicia.

“Para um Sapeur, mais do que um estilo de vida, a elegância é uma “condição” de estar no mundo, ou seja, condição em que a moda excede suas funções estéticas de representação e distinção social para adquirir valores intrínsecos ao comportamento e à conduta social.” Texto do antropólogo Antonio Motta, professor da Universidade Federal do Pernambuco.

O berço da SAPE é Brazaville, na República Popular do Congo e, segundo algumas fontes de pesquisa, o grupo data da década de 60, mas a verdade é que o movimento remonta ao período colonial, em que aristocratas franceses barganhavam favores dos colonizados em troca de roupas de segunda mão. Isso criou entre os “recebedores da alta costura francesa” uma espécie de movimento em que os adeptos utilizavam as roupas feitas com tecidos importados para se distanciarem, como em uma espécie de casta, dos demais moradores locais.

Por ser um país que se tornou independente somente na década de 60, esses resquícios dos colonizadores foram definitivos para a formação dos Sapeurs.

De fato, todas as nuances dentro do espectro das questões raciais durante a colonização sanguinárea proveniente da Europa para a África foram cruciais para contextualizar o surgimento da LA SAPE.

Mas, foi somente nos anos 70 que os dândis africanos — como são chamados por diversas revistas internacionais — ganharam destaque como um grupo de resistência cultural. O então cantor Papa Wemba, um entusiasta do estilo de vida dos Sapeurs, popularizou a ideia entre os moradores de Kinshasa e Brazaville, dando ênfase à estética elegante para os congoleses, independente das diferenças sociais.

Com a ajuda de Wemba, os Sapeurs se organizaram em “modo resistência”. Na época, o presidente Mobuto Sese Seko instalou um regime de “autenticidade”, uma espécie de resgate à cultura local e um distanciamento do colonizador que, até então, era a França. Wemba fez uso da cultura extravagante do grupo para desafiar os códigos de vestuário que proibiam os estilos ocidentais.

Como um movimento político se tornou uma obsessão?

Num país devastado pela guerra civil, com as maiores taxas de mortalidade infantil e os menores IDH do mundo, o ato de “ter” se tornou mais importante que o de “sobreviver”.

Documentário “The Congo Dandies”/ Depoimento sobre família que faliram para comprarem roupas a partir do minuto 15:50

O vídeo apresentado acima discorre sobre a subcultura dos Sapeurs, em especial o caso de um dos integrantes que vivenciou um processo de total falência dos negócios da família para poder comprar roupas e sapatos.

Ganhar dinheiro suficiente para comer é a prioridade máxima para a maior parte da população que busca até água para sobreviver, mas não para os integrantes da LA SAPE.

A sensação que temos ao olhar para esse contexto complexo é a de que, por ser um país neo independente, esse grupo seleto de homens ainda tenta se parecer com os colonizadores por achar que isso eleva seu status cultural, principalmente quando comparados com seus vizinhos e amigos.

A olho nu, parece só uma questão estética…

la sape vice

Ao mesmo tempo em que usam a estética como um ato de resistência, eles possuem uma atitude de supremacia para os demais moradores — um clássico exemplo em que o repressor é também reprimido por um sistema estrutural.

A ESTÉTICA DA MILITÂNCIA E A DESCONSTRUÇÃO CONTEMPORÂNEA

Se analisarmos a fundo e entendermos o contexto, de alguma forma os integrantes da LA SAPE chegaram à conclusão de que a estética que formavam ia além do ato de se vestir bem, ou seja, se tornou comunicação direta e modus operandi de existir.

Para tropicalizar a ideia, podemos fazer um paralelo com a “Geração do Tombamento”, que entendeu o estilo como forma de resistência, de resgate da ancestralidade e de valores, com uma leitura contemporânea de um comportamento que ultrapassa o limite do estilo e da moda e se torna uma comunicação direta sobre ideais e conceitos.

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Foto: Reprodução/ Karol Conka na Revista Veja

Assim como diversos movimentos de comportamento no mundo, os Sapeurspassam por uma reconstrução de valores, muito ligada à democratização de informação trazida pelos primeiros passos da internet no país e o contato que ela trouxe com outras culturas e valores. Existem vertentes, por exemplo, que manifestam a ideia de que ser Sapeur é uma forma de viver e não tem necessariamente ligação com grandes marcas internacionais. Muitos deles passaram a desenhar e desenvolver suas próprias roupas e acessórios para o seu uso diário, afinal, ser Sapeurs passa a ser mais sobre um estilo de vida elegante na fala, nas vestimentas e em suas atitudes.

“Um ponto que me chamou atenção foi ver que eles, além de se vestirem com roupas de grifes, vivem uma realidade econômica de um ambiente totalmente contrastante. Eles são muito elegantes, independente do que vestem. Vi que os Sapeurs vão muito além de pessoas que se vestem com roupas coloridas. Eu lembro que muitas vezes ao chegarmos bem antes da hora marcada da sessão de fotos, um deles ainda estava de bermuda e camiseta. Era interessante a postura dele quando nos recebeu, mesmo com roupas mais simples ele parecia um lord, cheio de classe e elegância”, comentaSilvânia Nobre, fotógrafa da exposição Culto da elegância na África Contemporânea SAPEUR.

OS SAPEURS E SEUS DIÁLOGOS COM O ESTILO, A ARTE E A CULTURA POP

Para entender a extensão do movimento Sapeur, jogue a #SAPOLOGIE no instagram e veja a quantidade de conteúdo gerado diariamente sobre o tema. #SAPOLOGIE é como se fosse a dinastia da LA SAPE fora do Congo. São pessoas dos quatro cantos da terra que se vestem com inspirações dos dândis africanos. Contas de Instagram como @afrodyssee, @velostyle e @lumumbarevolution se dedicam a disseminar o estilo da subcultura para o mundo.

A subcultura também inspira muitas marcas pelo mundo afora, como a SAPE&CO que é marca francesa que vende peças a partir de mil euros.

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Foto: Reprodução/ Instagram @afrodyssee

Outro fator peculiar foi o de popularização do tema dentro da cultura pop. Como é de praxe, a moda, o design e a música, de tempos em tempos, buscam em civilizações distantes e menos conhecidas, aspectos importantes que transmitam algo e, sobretudo, venda um estilo de vida.

Losing You foi o hit de 2012 da cantora Solange Knowles, uma música que mistura R&B, dance pop e indie pop e foi buscar na cultura dos Sapeurs uma estética que destoasse do convencional. O clipe da música, que foi citada pelo The Boston Globe de "dance break dos anos 80 nos primeiros moldes de Janet Jackson", foi gravado em Langa, na região de Cape Town, na África do Sul, mas com uma leitura contemporânea da estética dos Sapeurs.
Vídeo: Reprodução/ Clipe Losing You de Solange Knowles

O processo de colonização acaba produzindo uma relação de hierarquia e desigualdade entre aquele que coloniza e o colonizado, principalmente e por questão simbólica, o sentido da roupa para o mundo ocidental — a França, no caso — tem um lugar de destaque no modo de circulação e de como se tem acesso a determinados bens. Acredito que a forma como os Sapeurs tem utilizado a roupa como uma marco de ascenção e hierarquia social e cultural tem a ver com o processo de colonização, porque a roupa que eles consomem é a do ocidente. Pode ser que encontremos uma apropriação muito singular e isso é muito interessante enquanto um campo de estudo, mas o uso da roupa, de alguma maneira, tende para aquilo que tradicionalmente o é: um lugar de demarcação, um tipo de artefato cultural onde a classe social é definida. De outro modo, o uso de itens estrangeiros na cultura dos Sapeurs, tem relação com figuras de poder, controle e dominação. Além disso, há um paralelo direto com a história da colonização do Congo — obviamente, falamos a títulos de hipóteses e aproximações. Leonardo Lemos, Professor de Psicologia da UNESP.

De fato, estudar sobre os Sapeurs se trata de entender que é uma manifestação cultural repleta de camadas . No primeiro olhar existe o espanto, no segundo o encanto e, a partir do terceiro ou quarto, é possível começar a entender a relação, muitas vezes ambíguas, que o grupo tem com a estética. Ora militante, ora mais apegada com as questões colonizadoras. Contudo, o que se conclui, tentando desconstruir todas as camadas, é que se trata de algo inocente e genuinamente bonito — mesmo que, dentro de uma estrutura de comportamento reprimido/opressor — mas que, no cotidiano, eles encaram a estética como um estilo de vida no sentido mais amplo do termo: o da elegância para todo tipo de comportamento de suas vidas.

É nesse ponto que a estética com nuances não naturais comparadas à ancestralidade africana, se torna um fator crucial na vida dessas pessoas que a encaram como uma forma de ser melhor, mesmo que isso custe muito, seja em valor monetário ou no esforço de parecer mais próximos de uma civilização ocidental.

Um tema improvável, num lugar inusitado.

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